O que é, o que é: um outdoor pintado de rosa em meio a uma campanha publicitária, comunicando nada além de uma cor?
Nenhuma forma, (quase) nenhum outro elemento gráfico (além de uma data), nenhuma figura humana envolvida, apenas a cor rosa.
A estreia do live action da boneca Barbie está se aproximando e cada vez que uma nova imagem é divulgada, seja um teaser de promoção do filme, fotos das premieres com os atores ou do set de filmagens e dos figurinos, tudo é massivamente compartilhado pelo público nas redes sociais. O filme já parece ser uma das maiores estreias do ano e mesmo na pré-venda dos ingressos seu lugar entre as maiores bilheterias já foi garantido.
Um dos aspectos que vem chamando a atenção do público acerca dessa estreia é o exímio desempenho da equipe que trabalha na divulgação, que soube usar os 64 anos de história da boneca a favor da narrativa de desejo e ansiedade pela possibilidade de ir ao cinema. Essa divulgação massiva que retém o público não está atrelada apenas ao filme em si, mas também à venda de outros produtos e marcas que aderiram essa estética Barbiecore - estilo e visual inspirado na boneca Barbie - e surfaram na adesão das vendas, como as sandálias Melissa, Instagram (Meta), Xbox, Forever 21 e outras muitas marcas que lançaram coleções e acessórios para todas as idades e públicos usando a marca Barbie ou o rosa em questão. Seja qual for o produto, é interessante ter sua imagem vinculada a este objeto de consumo do qual se fala tanto no momento.
Pode ser que esse filme não converse nostalgicamente com todos, mas a Barbie é para muitas pessoas em torno do mundo uma referência não apenas de um brinquedo infantil, mas de uma estética muito bem construída que deu origem a inúmeros desejos, tornando-se para algumas pessoas até mesmo um estilo de vida. Essa estética se baseia principalmente na utilização da cor rosa que vem atrelada aos produtos, vestidos e acessórios que acompanham as bonecas, além do logotipo da marca.
Conseguimos atrelar o sucesso da boneca às milhares de vendas ao longo dos anos e à propaganda nos grandes veículos de mídia durante gerações, que conseguiram construir esse desejo de possuir ou ser como a Barbie. De acordo com María Acaso e Clara Megías (2022, p. 4) “As imagens constroem formas de vida: nossas formas de vida. Sem que percebamos, na origem de muitos dos nossos estados de espírito, expectativas e resignações estão as mensagens que elas nos transmitem”. Para as autoras, consumimos essas imagens de forma tão massiva no nosso dia a dia que elas acabam por se tornar uma realidade. Assim, o cabelo loiro, marca registrada das boneca-ícone, passa a ser referencial, compreendido como modelo, encarado como o mais bonito, bem como seus dentes brancos, seu corpo idealmente perfeito e os produtos que ela usa em cada uma de suas versões.
Por conta dessa construção de repertório e de desejos, Acaso e Megías (2022) defendem que precisamos ser “visualmente soberanos”. Isso significa que os elementos da linguagem visual usados pela publicidade devem ser ensinados para o público, para que as pessoas saibam ler as mensagens implicitamente inseridas nos produtos, aprendam a ler as imagens e assim possamos nos tornarmos conscientes e responsáveis.
Para ser visualmente soberanas, é preciso ativar o processo de consciência visual, que consiste no ato de perceber que as imagens transmitem determinadas mensagens com um propósito específico e, em consonância com esse perceber, tomarmos uma posição. (ACASO; MEGÍAS, 2022, p. 11)
Já que Acaso e Megías (2022) nos alertam que é importante reconhecer essas imagens ao nosso redor como dispositivos de poder e que elas nos ensinam - ainda que implicitamente - muitas mensagens, vamos partir das autoras para identificar esses elementos usados pela publicidade do filme Barbie. Segundo as autoras, todos os produtos ou marcas que estão presentes na nossa casa ou na nossa geladeira, são reconhecidos e diferenciados por uma série de códigos visuais amplamente ensinados de forma contínua: através de suas cores, texturas, disposição das informações, tipos e tamanho dos recipientes. Por isso, de forma quase instintiva, sabemos o que é uma caixa de leite ou uma lata de refrigerante sem precisar necessariamente ler as informações textuais, porque fomos ensinados a identificar seus códigos visuais. Esses produtos são classificados dessa forma e possuem rápido reconhecimento pelos consumidores porque profissionais da imagem e da publicidade se utilizam da linguagem visual.
Em outras palavras, a linguagem visual produziu em nós um tipo específico de conhecimento que vai impactar nosso desejo por determinada marca que nos levará a identificá-la rapidamente nas prateleiras de grandes lojas comerciais, mesmo que esse produto provavelmente não seja benéfico para a nossa saúde. (ACASO; MEGÍAS, 2022, p. 24)
No caso da Barbie, os impactos não foram apenas à saúde física. A construção de um modelo de mulher a ser seguido, um padrão, pode ter impactado - principalmente - as mulheres ao longo das gerações. A Barbie é uma mulher jovem, (recorrentemente) loira, com um corpo extremamente magro. Esse corpo foi formatado com medidas irreais, impossíveis de se alcançar. Por exemplo, o pescoço da boneca é duas vezes maior e seis vezes mais fino do que a média das mulheres americanas, o que impediria sua cabeça de ficar erguida. Sua cintura também possui um formato irreal, sendo mais fina que a própria cabeça, impedindo assim que houvesse espaço para órgãos caso fosse uma mulher de verdade. Suas pernas e pés também são tão finas que se fosse real não conseguiria ficar de pé. O fato desse corpo surreal ter se tornado um padrão e sua imagem ter sido compartilhada pelos veículos de mídia como a mulher perfeita pode ter gerado em muitas mulheres o que Acaso (2006) chama de terrorismos visuais¹, que são temores gerados pelas imagens presentes na publicidade e nas redes sociais que causam um impacto negativo nas pessoas que não se encaixam no que se está sendo vinculado, gerando uma ansiedade infinita em adquirir produtos e uma constante busca por esse ideal que é reforçado.
Camila Florentino - Como fabricar uma mulher (2016)
Mas, retomando a construção visual da Barbie e o caso do outdoor cor-de-rosa, o que importa a nível de curiosidade é como aquele tom de pink comunicou sozinho a informação sobre a marca. Segundo Acaso e Megías (2022, p. 83), “a cor é uma ferramenta carregada de informação visual”, porque temos a capacidade de associá-la a determinados significados, principalmente se atrelarmos isso à psicologia. Por exemplo, o preto associado à morte, o roxo associado à luxúria e o rosa à feminilidade e à doçura. Além disso, cores também são fundamentais na hora de reconhecer um produto comercial e são cuidadosamente escolhidas por uma marca na hora de estabelecer vínculo com seu público alvo por gênero, idade ou até por poder de compra.
Outras marcas também se apropriaram de cores de forma tão enraizada que é praticamente impossível não estabelecermos esse link identidade visual-comercial. Como, por exemplo, o caso da Coca-Cola com a cor vermelha, que chegou a transformar um feriado como o Natal em uma grande publicidade própria, ou do restaurante McDonald’s que tornou icônica a combinação de amarelo e vermelho, que remete às suas batatas fritas dentro das embalagens.
O que se percebe é o incrível trabalho de publicidade da equipe que fez com que nos últimos dias as redes sociais se tornem um imenso acúmulo de imagens em tons de rosa. Memes, fotos, relatos de pessoas que estão procurando roupas dessa cor para comparecerem aos cinemas para a estreia do filme. Também há relatos de manchetes sensacionalistas que chamam a atenção para o emprego dessa cor nos sets de filmagem, que aparentemente “acabaram com toda a tinta naquele tom de rosa do mundo”. Até o dia 21 de julho de 2023 o mundo é rosa, e como diriam nas conversas entre publicitários: “O diabo trabalha duro, mas o marketing da Barbie trabalha muito mais” (DIAS, 2023, s/p).
¹ Mais em outros textos desse site como “meu corpo, suas regras”, disponível em: <https://www.entrepesquisa.com.br/post/meu-corpo-suas-regras> e “cansei de querer o colírio”, disponível em <https://www.entrepesquisa.com.br/post/cansei-de-querer-o-col%C3%ADrio>.
sobre a autora:
Ana Carolina Ribeiro Pimentel é graduada em Fotografia pela Universidade de Vila Velha e atualmente cursando Licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participa do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e Arte Contemporânea (CE/UFES) com foco na linha de processos artísticos e educativos relacionados na contemporaneidade. Bolsista PIBIC CNPq (2022-2023), com desenvolvimento do projeto "Pós-fotografia e educação: O papel da leitura de imagens na aproximação com a arte contemporânea".
referências
ACASO, María. Esto no son las Torres Gemelas: Cómo aprender a leer la televisión y otras imágenes. Madrid: Editora Catarata, 2006.
ACASO, María. Soberanía visual: Una guía para la autogestión de las imágenes. Barcelona: Paidos Ibérica, 2022.
DIAS, Vanessa. O novo filme da Barbie é uma máquina de marketing (e eu posso provar). Rockcontent, 2023. Disponível em: <https://rockcontent.com/br/blog/marketing-novo-filme-barbie/>. Acesso em: 15 jul. 2023.
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