A adolescência é aquele período da vida onde há uma cobrança grande de nós mesmos sobre quem somos no mundo. Período de descoberta: da nossa sexualidade, de mudanças no corpo, de questões psicológicas nos atravessando o tempo todo nesse novo cenário. Tudo é muito, as coisas parecem sempre intensas demais, nos levando a extremos. E a puberdade, segundo a Organização Mundial da Saúde (2007), “constitui uma parte da adolescência caracterizada, principalmente, pela aceleração e desaceleração do crescimento físico, mudança da composição corporal, eclosão hormonal, evolução da maturação sexual”. Nessa fase é comum que toda a eclosão hormonal gere comportamentos muito característicos, além do aumento da ansiedade causada pela busca de si mesmo em relação ao mundo.
Entre os anos de 2005 e 2011, na minha própria adolescência e em meio a confusões e construções pessoais de identidade e sexualidade, um periódico de informação moldava o comportamento das adolescentes brasileiras que compartilhavam do meu contexto social: a revista Capricho.
A revista Capricho foi lançada em 18 de junho de 1952, por Victor Civita e pela Editora Abril, como a primeira revista feminina do Brasil. Começou como um caderno quinzenal, que falava de telenovelas e depois expandiu seu formato para moda, beleza, comportamento, contos e variedades, tendo como principal público-alvo mulheres jovens e adolescentes. As edições, embora não fossem consideradas baratas, circulavam nas mãos das garotas pelas escolas e outros ciclos sociais e estampavam as prateleiras principais das bancas e as paredes dos quartos de várias garotas pelo país, sempre contendo fotos de celebridades nas capas e manchetes que dialogavam com os problemas e mudanças enfrentados nessa fase.
Irene de Lima Freitas (2005) em seu estudo de caso da linguagem das revistas adolescentes, afirma que os autores das matérias, ao se dirigirem ao público, constroem uma imagem que certamente representará um dado segmento de pessoas que possuem um perfil bem definido. As chamadas de capa eram temas atualizados e latentes no universo e no dia a dia dos adolescentes e criavam essa relação entre o que a leitora buscava e a revista oferecia.
Esse tipo de linguagem e representação imagética reforçava nas entrelinhas um comportamento dado como “ideal”. As matérias ensinavam formas de agir que construíam uma identidade muito característica de menina desejável e eram, em sua maioria, sobre garotos e como entendê-los, conquistá-los e agradá-los. Tão nova, eu não poderia saber que aquele modelo de escrita passivo-agressiva me ditava ordens numa linguagem com gírias atuais, parecendo a amiga e conselheira que só queria que eu me desse bem. Mas, na realidade, era produto de uma indústria que impulsiona o consumo e a manutenção do pensamento dessa sociedade onde as mulheres são subjugadas e diminuídas. O suprimento das necessidades de conselhos presentes na revista levava ao consumo ainda mais compulsório dela, ao ponto que em um ano já havia comprado todos os exemplares.
Em colunas de “comportamento” eram comuns matérias sobre primeiro beijo, ciúmes, traições, formas de agir com o namorado, como conquistar um garoto, entre outras. Essa busca por um relacionamento era alavancada, colocando a garota como um corpo que só busca o outro, que corre atrás e que precisa daquilo. Uma mulher nunca estava bem sozinha, ela precisava daquele “gato”. Dessa forma, a Capricho construía o ideal de sexualidade: a menina heterossexual dentro dos padrões dos conselhos da revista, que encontrou seu par e agora pode viver uma vida feliz. Não era, nem de longe, considerado que talvez aquela garota pudesse estar interessada em outras garotas ou em ninguém. Uma garota feliz passava o dia dos namorados acompanhada e trocava presentes e recebia flores. Imagine o terror de uma adolescente que não conseguia alcançar tais “conquistas”. E que tipo de coisas as garotas que estavam namorando precisavam suportar para que “não perdessem o gato”.
Além das manchetes sobre comportamento, relacionamentos e testes variados, a revista possuía colunas de beleza e moda. Na maior parte dos títulos, os exemplares ensinavam a como ter uma barriguinha chapada, como emagrecer, como se vestir bem estando dentro do “peso ideal”, uma pele perfeita sem celulites ou olheiras. Nas capas, as celebridades exibiam suas barrigas chapadas e davam dicas de saúde e alimentação, afirmando essa imagem de mulher como boneca, sem elementos comuns à ela. Uma garota bem vestida era aquela que ficava bem em determinadas roupas na sessão conhecida por “certo e errado”, onde uma blogueira de renome anexava fotos de roupas que foram usadas de forma “estilosa” e as que ficavam ruins na sua percepção. Barriga de fora para garotas gordas? Um crime.
Com essas análises de manchetes e esses apontamentos, é importante ressaltar o quanto as revistas construíram a identidade e a mentalidade da garota adolescente das décadas anteriores. As adolescentes eram condicionadas a aceitar os defeitos masculinos sem questionar, respeitar apenas as opiniões dos homens, dar espaço a eles (deixar que eles procurem, que eles marquem e eles notem). A mulher era colocada nessa posição passiva e delicada, que precisava esperar e aceitar, porque era bondosa e submissa e essas eram características apontadas como inerentes ao ser feminino. A amiga oferecia riscos ao namoro, a amiga roubava o namorado e se colocava como obstáculo para a felicidade. Felicidade essa que se resulta em: estar namorando. Freitas (2005), também ressalta em sua análise crítica que existe em todo o discurso a presença de “marcas linguísticas de censura e de imposição, pois a autora apresenta-se com alto grau de julgamento de valor e como aquela que dita as regras de conduta”, com a presença de muitos termos “tem que” e “você deve” nos textos de revistas adolescentes (como a Todateen e Atrevida, concorrentes da Capricho).
Segundo a autora, a revista “torna-se, então, uma forma eficaz de se passar conceitos, cristalizar opiniões e moldar a identidade da adolescente leitora, pois esta não tem consciência de que está sendo alvo de uma ideologia que, transvestida de uma linguagem jovial, serve à perpetuação de estereótipos e corrobora para a manutenção do “status quo”: enquanto a jovem adolescente acredita estar participando de mudanças na modernidade, está na realidade sendo levada a viver um processo de representação de papéis sociais que lhe são impostos pela sociedade e reforçados pela revista, e que ela pode aceitar e passar a adotar prontamente”.
Além das mensagens escritas da revista, precisamos falar sobre as imagens que ela contém. María Acaso (2006) nos explica que estruturas de poder se organizam com o objetivo de aterrorizar a população através da linguagem visual. No mundo moderno, diz ela, "todas essas imagens nos fazem querer coisas que não temos, por isso vivemos em uma luta contínua para obtê-las. Corpo perfeito; o medo de não ter tudo o que o vizinho tem”. Na revista os exemplos disso são diversos: o terror ao corpo, as grandes marcas patrocinando o que os artistas da capa irão vestir, a repetição de elementos que demarcam modelos de comportamento e consumo. Além do mais, ao folhar as páginas podemos ver claramente um tipo de padrão de cabelos e roupas, ditando implicitamente o que se está na moda ou não, o que é certo e errado e ativando nas adolescentes os desejos de consumo, principalmente nessa fase de construção da identidade e demarcação da subjetividade. A magreza, o cabelo liso, a pele sem marcas, estão sempre associados à saúde e à felicidade. É comum pelas páginas observarmos essa narrativa sendo reforçada. Acaso aponta que o objetivo dessas imagens veiculadas na revista é modelar a identidade do indivíduo, criando ideais de estilo e vida, e nesse papel a Capricho se sai muito bem, se avaliarmos como foi referência para as garotas da minha idade.
Em resposta às mudanças do valor comercial da informação impressa diante da profusão de canais na mídia digital, em 2 de junho de 2015 a Editora Abril anunciou que não haveria mais a versão impressa da Capricho, mas seu conteúdo iria continuar, sendo postado no portal online e nas redes sociais da revista.
A fim de curiosidade, acessei o site da Capricho cerca de 11 anos depois da última vez que me lembro de ter lido matérias da revista, esperando ainda encontrar aquele mesmo conteúdo sobre garotos e como ser uma garota fashion. No entanto, as manchetes que encontrei iam por um caminho totalmente contrário, corrigindo falácias que a própria revista cometia na última década. A explicação disso é clara: a Capricho mudou porque os leitores mudaram, com o surgimento de discursos de empoderamento e luta pelos direitos das minorias que reverberam via redes sociais. Em resposta a isso, é claro que o mercado está moldando os discursos de grandes empresas e da publicidade para se adequar à nova mentalidade dos seus consumidores, porque uma revista que falava sobre “murchar a barriguinha” não dialoga mais com adolescentes amando o próprio corpo.
É interessante dizer que a colunista de “certo e errado”, Adriana Yoshida, também disse em uma entrevista que se arrepende por ter escrito a coluna.
“Eu tenho um ‘mea culpa’ para fazer porque eu escrevia a seção de ‘certo e errado’. Eu ditava muito a moda e dentro de um padrão que existia [...] Hoje não teria mais como fazer. Moda é uma ferramenta e você usa como for melhor para você. Precisamos rever essa história que nos foi contada [de padrões]. Não podemos entender moda sem gênero como se isso fosse uniformizar as pessoas, é para dar liberdade para o homem usar peça que sempre foi do armário feminino e a mulher também. Precisamos entender que roupas não vão determinar nossa sexualidade [...] Não dá para colocar só modelo magra para lançar tendência. [...] Esse movimento pela igualdade na moda só tende a aumentar”.
Não apenas a sexualidade entra em jogo na nova Capricho. As matérias informam sobre temas inerentes à saúde mental, racismo e feminismo, e mesmo que elas fiquem na superficialidade das questões, ainda é importante dado o público com que dialoga, talvez por representar um ponto de partida para uma mudança de pensamento ou um futuro interesse mais aprofundado. Na nova sessão “comportamento”, os adolescentes podem entender sobre diversidade, em matérias sobre homossexualidade, assexualidade, diferentes formas de gostar de alguém. É importante que novos discursos comecem a chegar nos adolescentes, não os poupando ou julgando que eles tenham uma mentalidade ainda não desenvolvida o suficiente para lidar com o assunto. Com essas novas matérias, a revista também amplia seus consumidores – apesar de ainda ser pensada para um público majoritariamente feminino, agora as matérias dialogam com outros gêneros e sexualidades.
Mas não é que eu acredite que uma revista que está há quase 70 anos liderando o mercado da informação adolescente do país mudou seus discursos apenas por estar sendo bem comprometida com o jornalismo informativo, ou por achar que as estruturas de poder devem ser abaladas. Não, o ponto-chave é que os principais veículos de mídia precisam que essas estruturas de poder fiquem onde estão. A mudança é apenas consequência de uma adequação ao público consumidor, que segue como o mesmo alvo: maior parte de garotas adolescentes de classe média, antenadas nas redes sociais e atualidades. Adriana Yoshida fez uma fala bem pontualmente em sua entrevista sobre o assunto: “Esse movimento pela igualdade na moda só tende a aumentar”. E de fato, só tem aumentado. É um novo nicho de mercado que se abre com novas opções, agregando outros consumidores. A saia que era usada unicamente por garotas com um corpo padrão nos anos 2001, pode ser usada por garotas e garotos com diferentes corpos em 2021, aumentando o número de possíveis compradores.
Para além da divulgação dentro do portão da editora, a marca também criou uma conta no instagram – é lógico – e ostenta mais de 4 milhões de seguidores e mais de 5 mil curtidas em cada postagem com frases de empoderamento e diversas blogueiras dando dicas de moda e beleza. O instagram é uma ferramenta interessante porque recebe feedbacks instantâneos sobre o conteúdo postado e sobre as necessidades do público, além de conseguirem contabilizar as opiniões diferentes em cada postagem e fazer uma seleção ainda mais apurada de público-alvo.
Apesar de não serem mais impressos exemplares da Capricho (e de muitas outras revistas que deixaram de existir nas bancas), essas fontes opressivas passaram a estar nas redes sociais, desempenhando seu papel mais forte que nunca. O instagram é repleto de marcas e empresas formadoras de estilos de vida, saturando objetos de desejo por todos os lados e fazendo crescer o consumo. Acaso (2006) aponta que “essas imagens veiculadas nos canais de mídias geram mundos visuais que funcionam como referências do que deve ser desejado e são formadoras de gostos pessoais. A publicidade é o que nos diz quanto devemos pesar, qual deve ser a medida da tela de plasma ou de que cor o carro deve ser comprado. Dependendo do tipo de objetos que tivermos, assim seremos catalogados por outros e seremos reconhecidos ou não como membros de um ou outro grupo”.
O que vale ressaltar é que leitores e seguidores da Capricho (agora contando com meninos gays, trans ou pessoas não binárias) sempre estiveram nas salas de aula. A aluna que eu fui junto a minha geração não cabe mais no contexto atual. As novas discussões dos adolescentes nas redes sociais – como no twitter, por exemplo – mostram que essa geração está antenada aos problemas de manter por anos uma estrutura patriarcal e os terrorismos que falamos anteriormente. Então, se torna imprescindível que os professores e os conteúdos atendam aos novos pensamentos que entram no ambiente escolar. Os alunos têm novas demandas e uma outra percepção, principalmente quando se trata do ensino da arte. O papel do professor, nesse caso, também é de apresentar conteúdos que dialoguem com esses novos indivíduos e que lhes impulsione o pensamento crítico acerca dessa sociedade e o que fizemos com ela ao longo dos anos. Enquanto nos anos 2000, o que nem é tão longe, garotas estavam preocupadas com seu primeiro beijo, sendo motivadas a “conquistar aquele garoto” pelas revistas e pela TV, as de hoje conseguem identificar problemas nesses discursos e se afirmar enquanto garotas feministas, gordas, lésbicas, pretas e qualquer outra individualidade. Essa crítica em relação à visualidade precisa ser também discutida em sala de aula, porque movimentos como esses provocaram mudanças - novamente, comerciais, cabe lembrar, no campo da publicidade. A mídia mudou, a Capricho mudou e estou ansiosa pelo ponto onde a escola também vai mudar.
sobre a autora:
Ana Carolina Ribeiro Pimentel é graduada em fotografia pela Universidade de Vila Velha e atualmente cursando licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participa do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e Arte Contemporânea (CE/UFES) com foco na linha de processos artísticos e educativos relacionados na contemporaneidade.
referência:
ACASO, María. Esto no son las Torres Gemelas: Cómo aprender a leer la televisión y otras imágenes. Madrid: Los Libros de la Catarata, 2006.
BRASIL, Ministério da Saúde. Marco legal: saúde, um direito de adolescentes. Secretaria de Atenção à Saúde. Área de Saúde do Adolescente e do Jovem. Brasília. Ministério da Saúde, 2007.
GUIMARÃES, Paula Pontes. Falta de Capricho: uma análise sobre o discurso da revista teen. 2017.
Que viagem no tempo!!! eu lembro totalmente. tenho uma prima um pouco mais velha que, nessa época (2008?) tinha TODAS essas revistas para meninas adolescentes. Acho que seria válido trabalhar até com essa galera que pegou as revistas impressas. Quantas meninas/mulheres, na minha familia e colegas da escolinha, vejo hoje com 25 anos que ainda reproduzem os mesmo desejos de consumo que a capricho divulgava... Quem era adolescente na epoca impressa nao leu a revista atualizada como é hoje né, e essa galera acabou procurando um conteúdo parecido com o que existia em 2005 sobre moda, beleza e relações heterossexuais e segue consumindo quase a mesma coisa. Fé nas crianças de hoje, fé nas professoras de hoje que apresentando e…