Ao longo da história o caminhar esteve relacionado com ações cotidianas como conseguir alimento, construir abrigo, percorrer o espaço, a natureza e posteriormente as cidades, mas não ficou restrito a isso, já que desde as vanguardas artísticas europeias alguns artistas utilizam esse ato cotidiano como parte das suas criações, tal como ocorreu no dadaísmo e no surrealismo. Posteriormente, o caminhar passou a ser explorado na arte contemporânea sendo parte da poética de diferentes artistas.
Dentro da perspectiva da ação cotidiana, a Internacional Situacionista (IS), um grupo de cunho político e artístico formado por pensadores, ativistas, arquitetos e artistas, fundado em 1957, igualmente explorou o caminhar em suas práticas pela cidade, compondo seus pensamentos relacionados ao urbanismo, à arte e à política.
Em Apologia da Deriva, livro acerca de escritos situacionistas sobre a cidade, a IS é apresentada como um grupo que advogava contra a espetacularização da sociedade, logo, contra a alienação e os processos de não participação dos indivíduos nas suas diversas esferas. Para subverter essa espetacularização era preciso agir com o seu oposto, ou seja, a participação dos sujeitos em todas as esferas da vida, sobretudo, na cultura.
Por isso, “O interesse dos situacionistas pelas questões urbanas foi uma consequência da importância dada por estes ao meio urbano como terreno de ação, de produção de novas formas de intervenção e de luta contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida cotidiana moderna” (JACQUES, 2003). Sendo assim, o meio urbano era enxergado como espaço para jogo, um jogo lúdico e de experimentação, em que o espaço da cidade é percorrido. No caso, essa noção de jogo se diferenciaria da ideia geral do conceito, já que para os situacionistas na ação proposta não deveria existir competitividade ou a distinção entre jogo e vida cotidiana. O Grupo se referia ao jogo como coletividade e criação de ambiências na cidade, compreendida como o terreno de ação.
Nesse sentido, principalmente com a noção de Urbanismo Unitário (UU) essa ideia do jogo foi explorada. O UU era uma crítica ao urbanismo no qual a cidade era local para que o jogo ocorresse, em que a participação deveria acontecer com construções de situações e experiências nos espaços. Assim, o UU teria como proposição principal experiências (efêmeras) no meio urbano apoiadas por meio da psicogeografia (procedimento) e da deriva (prática), objetivando envolver o público não como ator, mas sim, vivenciador.
Logo, a psicogeografia consistia em reconhecer e estudar os efeitos do meio geográfico sobre o comportamento do homem, enquanto que a deriva era exercício prático da psicogeografia de compreensão/percepção do espaço urbano (JACQUES, 2003). Portanto, a deriva era compreendida como “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade humana: técnica da passagem rápida por ambiências variadas” (DEBORD, 1958). Para Visconti (2014) “[...] Guy Debord descreve e normatiza a prática da deriva, que consiste em perambular, sobretudo, a pé, mas eventualmente também de outras formas, sem rumo predefinido, escolhendo ao acaso, ou com base em sensações e impressões extemporâneas, a direção a ser tomada a cada momento”.
Um exemplo de jogo, que o próprio Debord menciona em Introduction à une critique de la géographie urbaine (1955) foi realizado por um amigo dele, não identificado dentro do texto, que caminhou pela região de Hartz na Alemanha com um mapa da cidade de Londres e seguiu todas as indicações presentes no mapa, propondo uma sobreposição dos territórios das duas cidades. Outra exemplificação de ações dos situacionistas é um mapa psicogeográfico, o Guide psychogéographique de Paris (imagem 1), mapa dobrável que foi destinado aos turistas, mas diferentemente dos outros gráficos de identificação da cidade, é um mapa-convite para se perder: “Ao abrirmos esse estranho guia, encontramos Paris explodida em pedaços, uma cidade cuja unidade foi completamente perdida e na qual reconhecemos apenas fragmentos da cidade histórica que flutuam num espaço vazio” (CARERI, 2020). Então, os turistas a partir desse mapa deveriam seguir as setas presentes nele que uniam ambientes e caminhar a partir dessas novas proposições de percorrer a cidade, reconfigurando suas relações com o meio urbano.
Um último exemplo foi The Naked city: Illustration de l’hypothèse des plaques tournantes en psychogéographique (imagem 2), também um mapa, nesse caso, conhecido como um símbolo situacionista, que para Jacques (2003) é a imagem que mais representa o pensamento urbano situacionista e também é representação gráfica da deriva e da psicogeografia. The Naked City foi desenvolvido por meio de recortes de um mapa de Paris em preto e branco e com setas vermelhas que sugerem conexões entre esses recortes. As unidades colocadas parecem ser aleatórias porque na verdade não estão de acordo com o mapa real, mas são organizações afetivas do espaço, “ditadas pela experiência da deriva” (JACQUES, 2003), onde as setas poderiam indicar possibilidades de derivas.
A partir das experiências descritas, é possível compreender que a deriva buscava se apropriar do espaço urbano e era um exercício de participação, contra a sociedade do espetáculo, geralmente ocorrendo sem o planejamento de uma rota específica, podendo sim, delimitar seu acontecimento em uma cidade ou bairro, mas sem especificar a rota. Outra questão que caracterizava a ação, como apontava Debord, era que as derivas poderiam acontecer com uma pessoa sozinha ou em pequenos grupos. Como memória dessas experiências, além das próprias caminhadas também existem registros dos trabalhos como os mapas citados, colagens e às vezes alguns materiais e textos, mesmo que o principal fosse a experiência de fato na cidade.
Paola Berenstein Jacques (2003) menciona que a crítica urbana situacionista teve base teórica que se fundamentava na experiência e observação da cidade e “pode-se considerar a reunião das ideias, procedimentos e práticas urbanas situacionistas como um pensamento singular e inovador, que poderia ainda hoje inspirar novas experiências, interessantes e originais, de apreensão do espaço urbano” (JACQUES, P, 2003). Já para Francesco Careri (2017), a deriva pode ser vista hoje como geradora de encontros que estabelecem relações pelo caminho, além de que: “A deriva já não é uma peregrinação solitária ou coletiva em busca de territórios inexplorados, mas também é um dispositivo de interação para habitar territórios já habitados, ser hóspede e receber hospitalidade” (CARERI, 2017).
Guy Debord - Guide psychogéographique de Paris (1957)
Guy Debord - The Naked City (1957)
Por fim, após essa breve (muito breve) introdução, ou iniciação acerca de ideias da Internacional Situacionista (IS), relato duas caminhadas realizadas por mim, não com intuito de replicar as ações dos situacionistas por completo, mas como um exercício que visava pensar a ação de caminhar para habitar e estabelecer relações pelo caminho a partir de encontros, nas quais busquei ser vivenciadora, tal como propõe o Urbanismo Unitário.
Caminhada 12/12/21
Era um domingo ensolarado e às 15 horas e 27 minutos eu e a minha irmã partimos da nossa casa com o intuito de irmos até a praça do bairro que moramos. Ainda que motivadas pelas experiências da IS (mais eu do que ela), no caso da nossa proposição tínhamos um rumo definido, diferentemente da noção da deriva explicada por Visconti, mas apesar disso, o trajeto até chegar ao rumo foi ao acaso. Eu objetivava chegar até a praça que comumente frequentava nos meus anos de escola mas, dessa vez, a ideia era fazer uma caminhada nos limites entre minha residência atual e a praça (lugar definido), sobretudo, passando/percebendo e analisando todo o trajeto feito, a paisagem ao redor, o movimento das pessoas e dos transportes, as possíveis limitações do trajeto e refletir sobre os caminhos que decidi (com minha irmã) tomar para chegar até o destino final, nesse caso, minha movimentação pelas ruas. O objetivo da minha irmã era diferente, ela queria apenas me acompanhar e chegar ao destino final, onde eu disse para ela que pararíamos para lanchar e também finalmente realizar essa caminhada comigo, já que tanto insisti para que acontecesse. Apesar disso, definitivamente ter companhia é algo que afetou essa caminhada, fato a ser ainda comentado.
Caminhar por um trajeto do meu conhecimento, de um lugar cotidianamente frequentado, mas que dessa vez teria o diferencial de não ser mais uma caminhada automática, ou seja, entendida aqui como uma caminhada desatenta ao próprio trajeto e seus encontros pelo caminho. O desejo dessa experiência era de ampliar a visão das ruas, trechos, paisagens e principalmente do meu próprio movimento, refletindo sobre escolhas tomadas no trajeto. Esse percurso possibilitou ter novas percepções, lembranças e entender um pouco mais sobre meu comportamento no espaço e o que me atraiu naquele percurso específico, em que me inspirei na ideia de psicogeografia, já que fiquei atenta aos efeitos do espaço sobre mim mesma.
Entendi essa ação como um encontro ao pensamento de Careri, no qual a deriva atualmente poderia fazer referência a geração de encontros e o estabelecimento de relações pelo caminho e o habitar dos territórios já conhecidos/explorados, onde se encaixam aqui as novas percepções sobre eles.
O dia ensolarado definitivamente foi um fator que definiu a escolha do caminho que iríamos fazer, por vezes escolhendo o lado da rua em que tinham sombras de árvores que deixavam a sensação um pouco mais agradável. Em outros momentos, depois de caminhar por uns minutos no sol, parava em alguma sombra por alguns segundos para descansar e beber água, afinal, devido ao calor minha pressão começava a dar sinais de que já estava abaixando, o que também foi algo que influenciou o percurso, principalmente em relação ao ritmo dos passos, que se tornaram muito mais devagar do que os da minha irmã.
Além do calor, percebi que alguns outros “acontecimentos” no decorrer da caminhada também foram responsáveis pelas escolhas do trajeto, como por exemplo um momento em que decidi tirar uma foto instantânea da paisagem da lagoa ao redor da estrada que caminhávamos. Nesse momento notei que o nível da água estava mais baixo, revelando não estar em período de chuvas fortes na região. Quando fiz a foto, deixei ela cair no chão, o que me fez ter que andar para o outro lado da rua para buscar, e por vez, decidi permanecer no lado onde a foto caiu e seguir o trajeto.
Ainda perto da lagoa, parei por outro motivo, a diferença no asfalto liso em relação a um buraco na estrada preenchido com blocos chamados de “paralelepípedos”, e o que me chamou a atenção foi a diferença de textura entre eles. A caminhada continuou, também com outros fatores que me fizeram por vezes trocar o lado do percurso, como um momento no qual avistei um único sapato perdido e mais para frente uma sola de sapato. Resolvi chegar perto dos objetos encontrados e mudar o lado da rua, então, fiquei pensando se talvez ele teria caído de algum lixo.
Nas partes em que tinha calçada para pedestres, eu e minha irmã decidíamos passar por elas, mas nas partes em que tinha só a estrada, nós também escolhemos o lado da rua baseado não somente nas sombras ou objetos encontrados no caminho, mas no fluxo de carros e bicicletas, pois não queríamos passar perto desses (para não sermos atropeladas). Outro fator que influenciou no trajeto foi a vivência no período da pandemia, o que também contribuiu para nossas decisões de tentar desviar sempre que avistávamos alguém por perto (sobretudo se o transeunte estivesse sem máscara).
Esses exemplos evidenciam que por mais que existisse um destino final, todos esses acontecimentos foram fatores fundamentais para que o trajeto não fosse completamente programado, já que me deixei levar pelo que ocorria por vezes nesse percurso, tomando as escolhas do caminho me baseando nele. Essa ideia de me deixar levar pelo próprio ambiente foi para tentar me aproximar pelo menos um pouco das ideias dos situacionistas.
Como mencionado anteriormente, ter companhia afetou a caminhada, porque ao meu ver, quando caminhamos com alguém, por vezes as decisões dos momentos para parar, mudar o trajeto ou seguir, vem de sugestões da dupla (ou grupo), o que pode também influenciar a maneira como o indivíduo percebe o espaço e nota as suas ações por causa dele e sobre ele. Ademais, para não deixar de mencionar, sempre surgem conversas no caminho que podem compor a experiência.
Ao chegar na praça, fomos até um café e nesse ponto já esperava muito por isso devido ao calor, inclusive o calor do dia não só influenciou o percurso, como também a própria escolha do que eu ia beber, fugindo de algo quente e dando preferência para algo que refrescasse.
No final, tudo isso me fez pensar que enquanto caminhávamos geralmente pensávamos e focávamos no destino, muitas vezes esquecendo dos encontros do caminho, prestando atenção somente ao que era “extraordinário” como uma paisagem, um pôr do sol ou algum animal pelo caminho. No decorrer do percurso não nos atentávamos aos pequenos detalhes que podem ser até considerados bobos, como o sapato, as sombras, ou a foto que caiu e me fez trocar o lado da rua, mas que agora considero como importantes, porque percebi que podem também influenciar nas escolhas do trajeto ao caminhar.
Caminhada 31/12/21
A caminhada da véspera do ano novo foi decidida completamente na hora (19 horas e 30 minutos), porque iríamos (eu e minha irmã, novamente) passar a virada em casa com nossos pais, porém, estávamos arrumadas e entediadas, logo, Alice me propôs de andar novamente até a praça da caminhada anterior, somente com o propósito de fazer algo para afastar o tédio. Encarei essa proposta como mais uma oportunidade de um exercício para prestar atenção ao meu redor e em mim mesma, animada por caminhar na véspera de ano novo na parte da noite, algo que nunca tinha feito antes.
O sapato que eu usei nessa caminhada foi o mesmo da do dia 12/12/21, um All Star branco, mas a caminhada em si foi bem diferente, começando pelo fato de ser noturna, de estar quente, mas não tão como aquela da tarde do dia 12, então, a minha pressão não abaixou e inclusive, consegui caminhar bem mais rápido por esse motivo.
Dessa vez, passando pela estrada perto da lagoa, o que me chamou atenção e fez parar por alguns segundo foi o barulho dos sapos e grilos que escutamos, um som que particularmente gosto e é bem comum nessa região. O fato de estar de noite fez com que nós passássemos mais rápido pela estrada perto da lagoa, isso porque fica perto da vegetação e costuma não ser um local movimentado, o que de noite fez eu e minha irmã sentirmos receio de não estarmos em um grupo grande com outras pessoas, além de lógico, não estar tão quente possibilitar passos mais rápidos também.
Além do barulho dos sapos e grilos, outros acontecimentos chamaram a atenção na caminhada: uma mulher que estava com roupa de ginástica e corria pela rua me surpreendeu, por ser véspera de ano novo e geralmente as pessoas fazerem as comemorações na virada, portanto, não esperava ver alguém se exercitando de noite.
Um cachorro que por vezes andava e parava para sentar no meio (bem no meio mesmo) da rua também me atraiu, já que ele repetia a ação algumas vezes e achei engraçado. Depois de alguns minutos o cachorro acabou entrando em uma parte do caminho com grama, então acabei perdendo-o de vista, mas até o momento estava prestando atenção e desviando para evitar um possível encontro de perto.
Por último, chamou atenção o movimento do bairro, com muitas pessoas em sorveterias, bares e pastelaria, também, algo que eu não esperava encontrar, porque na minha cabeça as pessoas na véspera do ano novo costumavam ir para praias ou passar em casa, mas com a caminhada percebi que na verdade isso não é uma regra.
Em comum com a outra caminhada foi também a vontade de desviarmos e passarmos longe das pessoas para evitar aglomerações por causa da pandemia, mas excluindo esse fato, eu diria que mesmo o destino final sendo a praça a caminhada foi completamente diferente. Seja pelo horário distinto, pelo receio de andar de noite perto da lagoa, pelo barulho dos sapos, grilos e cigarras ou pela mulher e o cachorro que chamaram a atenção. Por fim, foram duas experiências diferentes, que despertaram ações na espacialidade, pensamentos e sentimentos distintos entre si e das vivências anteriores do ato de deslocar-se pelo mesmo caminho.
Com os percursos diferentes e mudanças no caminho pelo asfalto de maneiras diferentes, mesmo sendo a mesma delimitação de espaço (da minha casa até a praça), me deu vontade de repetir novamente em outras circunstâncias, já que as experiências mudaram a minha relação com o espaço urbano, mas também em como eu me vejo em relação a esse espaço, como me comporto e o que influencia a minha caminhada.
Convido vocês ao mesmo exercício, caminhar por um lugar escolhido sobre circunstâncias e momentos diferentes. Quais ações surgem dessa caminhada? Como vocês habitaram o espaço? Qual a relação com o espaço e com vocês mesmo? O que o espaço despertou em vocês? Surgiram novas relações a partir disso?
sobre a autora:
Clara Pitanga Rocha é graduanda na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Atualmente faz parte do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES), com o objetivo de estudar os caminhos e as relações entre arte contemporânea e educação.
referências
CARERI, Francesco. Caminhar e parar. São Paulo: G. Guilli, 2017.
CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: G. Guilli, 2020.
DEBORD, Guy. Introduction à une critique de la géographie urbaine. Bruxelas/BE: Les lèvres nues, 1955.
DEBORD, Guy. Théorie de la dérive. Bruxelas/BE: Les lèvres nues, 1956.
JACQUES, Paola (org.). Apologia da deriva. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
VISCONTI, Jacopo Crivelli. Novas derivas. São Paulo: Martins Fontes, 2014.
https://ev.escoladacidade.org/portfolio/g_32-caminhar-como-forma-de-ocupar/
Comments