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Foto do escritorjulia rocha

nada se desperdiça

Relato do encontro “Escultura ambiental”, com Jorgge Menna Barreto, realizado em 20 de julho de 2020


Diante das discussões sobre meio ambiente e do crescente debate acerca de medidas mais sustentáveis para viver em comunidade, diversos estudos no campo da ciência, da ecologia e da agronomia têm sido realizados visando reconfigurar a relação dos sujeitos com o planeta. Desses estudos, surge para a comunidade a reflexão sobre o desperdício e a necessidade de aproveitamento máximo dos insumos em vista de uma diminuição da exploração indevida da matéria-prima vinda da natureza. O sentido do aproveitamento máximo daquilo que consumimos permeou a conversa que tivemos com Jorgge Menna Barreto, realizada virtualmente durante o contexto da pandemia, em 20 de julho de 2020.


Durante o diálogo com o artista ficou ressoando a noção de que nada se desperdiça. Não somente porque os trabalhos mais recentes de Jorgge Menna Barreto falam especificamente da agroecologia, mas também porque a conversa deixou a impressão de que nenhuma camada fica inexplorada na reflexão construída pelo artista. Cada frase que Jorgge diz apresenta muitas aberturas, inicia novas conexões, indica mais camadas que podem ser exploradas nos sentidos dos trabalhos. Cada obra propõe discussões que versam sobre o site specific, a iminência da participação dos públicos, a consciência em relação às questões do meio ambiente, não deixando nada em excesso, aproveitando cada aspecto que potencializa o trabalho. O total aproveitamento de tudo o que é dito fica perceptível no estudo que Jorgge faz das palavras, relacionando etimologias com os sentidos que os trabalhos buscam desenvolver com seus públicos.


Pensando especificamente neles, nos públicos, Jorgge demarcou o espaço de mudança que estes trazem para seus trabalhos, porque segundo ele “O público nunca se comporta como a gente quer. Ainda bem”. A partir das respostas que vão para outros caminhos e do comportamento inesperado do público, o artista recria conexões, mostrando que efetivamente não há desperdício das leituras possíveis de se desenvolver a partir da sua produção.


A noção de que nada é desperdiçado também aparece logo no título da fala, nomeada pelo artista como Escultura ambiental. Quando questionado inicialmente sobre o sentido desse título, Jorgge informa que o termo apresenta a junção de duas referências de artistas que permeiam e balizam sua produção; primeiro está a escultura social de Joseph Beuys, depois o programa ambiental de Hélio Oiticica. Pela construção desse conceito compartilhado, o artista conseguiu traduzir a tônica que o conjunto dos seus trabalhos permite compreender.


Durante todo o nosso diálogo Jorgge Menna Barreto se colocou como um artista que pensa principalmente a linguagem do site specific. Mas esse lugar não delimita completamente seu trabalho, uma vez que em certos momentos dialoga também com produções que versam sobre o tempo, apresentando a possibilidade de olhar para parte da sua produção como time specific. Pensando no tempo, a construção do nosso encontro foi feita a partir das obras do artista, que tinham sido previamente estudadas e escolhidas por cada elemento do grupo. O percurso foi tecido de forma a analisar os trabalhos em blocos, criando analogias entre eles e direcionando a apresentação do artista e o debate em três diferentes focos: do que se conecta com a educação e/ou os públicos, do que envolve a agroecologia e o meio ambiente e das demais interfaces de atuação do artista e projetos futuros.


Por sugestão do próprio Jorgge começamos conversando sobre Desleituras (2011), que consistia em tapetes que atuaram como dispositivos de mediação na exposição 32º Panorama da Arte Brasileira no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Com estreita relação com a curadora Cecília Bedê e analisando os trabalhos que estariam na mostra, o artista desenvolveu termos que somavam sentidos de dois diferentes verbetes, criando uma nova palavra (ainda) não existente na Língua Portuguesa. Essas palavras estampavam tapetes de entrada - o que pode se relacionar também com o sentido de acesso, de abertura em relação aos trabalhos presentes na exposição - e os tapetes estavam disponíveis na mostra, para que os visitantes os deslocassem, criando uma espécie de nova curadoria, uma nova interpretação dos conceitos que as demais obras do Panorama poderiam abrir.


No mesmo museu, Jorgge propôs o Café educativo (2007), que se constituía como um espaço de mediação não-diretiva, onde o educador estava disponível para começar uma conversa, se fosse o caso e se fosse do interesse dos visitantes. Disponíveis para oferecer um café e conversar, os mediadores precisavam fazer uma espécie de escuta, buscando desenvolver um discurso emancipado das próprias questões curatoriais que estavam presentes na exposição e não cair na ideia de um discurso de subserviência.


Continuando no bloco de trabalhos que versavam sobre a participação dos públicos, em Projeto matéria (2004), o espaço expositivo se tornou uma sala de aula no Centro Cultural São Paulo. O trabalho contou com oito oficinas, com oito diferentes convidados, Carla Zaccagnini, Cristina Freire, Ana Tavares, Tatiana Ferraz, Raquel Garbelotti, Ricardo Basbaum, Regina Melim e Graziela Kunsch. As oficinas discutiam questões sobre site specific, passando pela desmaterialização do objeto artístico, táticas de mapeamento do lugar, formas de pertencimento, a interface artista-professor, o espaço da sala de aula como performação, o registro e a documentação. Para além das oficinas, o espaço expositivo/sala de aula expunha planos de ensino de artistas que têm/tinham uma prática como professores. Tal como em outros trabalhos onde nenhum sentido é desprezado e tudo é aproveitado, em Projeto matéria existe a duplicidade do sentido da palavra matéria, que tanto pode compreender aquilo que é objeto da arte, a matéria-prima a ser desenvolvida, quanto também é termo recorrente no campo da educação, associando a matéria como disciplina, como área de estudo.


Devido a instância participatória que os trabalhos de Jorgge Menna Barreto desenvolviam, o artista passou a atuar como coordenador do educativo do Paço das Artes, criando o Grupo de educação colaborativa (2007). Pelo próprio sentido do nome compreende-se que, para o artista/coordenador, o ato mediador era entendido de forma horizontal, em uma espécie de exercício colaborativo. Como o artista demarcou em sua partilha, a entrada nesse campo da mediação veio mais pelo campo da arte do que pela educação, tanto que parte de suas referências para construção do Grupo vinham das teorias da participação de Hélio Oiticica e Lygia Clark.


Como a produção do artista esteve sempre permeada pelos processos de formação, passando desde a gradução até o segundo pós-doutorado - nesse momento em desenvolvimento na LJMU, Inglaterra - um trabalho que Jorgge Menna Barreto apresentou foi um dos capítulos de sua dissertação de mestrado, Inacontecido [Mesas] (2007). Conceituando site specific e discutindo as acepções para o termo não traduzido (um incômodo inclusive sinalizado pelo artista), nesse trabalho Jorgge põe as palavras sobre a mesa; somando referências e falas de diferentes autores dos mais variados campos. Com um escrita narrativa Jorgge reúne artistas, escritores, filósofos e poetas, utilizando-se de um método negativo, demarcando os nomes de forma tachada (como Jorgge Menna Barreto), deixando até mesmo a dúvida se aquilo foi afirmado pelas referências escolhidas.


O segundo bloco da conversa foi pensado a partir dos trabalhos que versam sobre questões relacionadas com o meio ambiente. E se isso pareceria uma mudança de foco nos trabalhos ou um distanciamento do site specific, Jorgge nos reaproxima ao informar que, tanto em Sucos específicos (2014), como em Restauro (2016), o corpo e o intestino são entendidos como lugar e o alimento é entendido como campo expandido. Desenvolvidas de forma coletiva, as duas obras atendem ao sentido de mudar a paisagem do planeta a partir do que comemos. As duas produções ainda reverberam no que o artista tem produzido e Restauro desdobrou-se na criação da Revista Enzima (2020), que é um termo que surge a partir da obra da 32ª Bienal de São Paulo. Naquele momento três educadores atuavam como mediadores do Restauro e foram apelidados de enzimas digestivas - pela possibilidade de operar no processo digestório daquilo que era consumido na exposição.


Trabalhando em parceria com Joélson Buggilla na Revista Enzima, na construção dos diferentes volumes, os artistas percebem o sistema digestivo como uma ferramenta de escultura. Como indicado antes, o que consumimos enquanto alimento é demarcador e criador de novas paisagens. A criação da Revista, pensada em três diferentes edições, conectou a conversa para o nosso terceiro bloco, onde buscamos entender as interfaces do artista-etc. que Jorge agrega na sua prática. Segundo a etimologia da palavra, o verbete paisagem tem a mesma origem de página. Assim, nas diferentes edições da Revista Enzima, Jorgge e Buggilla propõem cultivar a especificidade da palavra, ler a especificidade da mesa e comer a especificidade da terra.


A tradução, compreendida por ele como transcriação foi indicada como um exercício recorrente e que está em desenvolvimento - destacam-se aqui Introdução ao pensar como uma floresta (2014), de Dion Workman, A Arte de Ser Testemunha na Esfera Pública dos Tempos de Guerra (2009), de Rosalyn Deutsche e A armadilha se fecha (2009), de Noemi Smolik. Nesse momento Jorgge trabalha na tradução para o português do livro The Mushroom at the End of the World, de Anna Tsing. A partir da tradução, novamente o artista associa a etimologia da palavra, para nos dizer que traduzir é “escrever com”, o que o coloca novamente no processo colaborativo e coletivo que aparece em outros trabalhos.


Diante do questionamento sobre projetos futuros, Jorgge reforçou a importância da tradução como parte de seu processo de pesquisa, reincidiu o discurso sobre o estudo em torno da alimentação e de questões da agroecologia e sinalizou uma problemática mais ampla para o campo da arte, que se encontra na figura autoral e na perda do limite entre artista e públicos. Outros projetos se constróem, aproveitando todas as camadas discursivas e não abrindo espaço para desperdícios.



sobre a autora:

Julia Rocha é professora da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Realiza pesquisa sobre o ensino da arte na contemporaneidade, mediação cultural, relações entre museus e escolas, avaliação de propostas educativas no campo das artes visuais e formação de professores.





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