Relato | Crítica Gastronômica da conversação, “Banquete visual e indigestão imagética” com Julia Rocha, ocorrido no dia 21 de março de 2023, por Helena Pereira Barboza
Imagine que você está entrando em uma sala de aula, mas sua organização não é cartesiana: ao invés de pequenas carteiras esverdeadas, uma atrás da outra, temos uma grande mesa de madeira formando um círculo. Sem prioridade de conforto para uma única figura, todas as cadeiras presentes na sala são acolchoadas e acolhedoras. Sua iluminação não é com uma luz branca e forte, mas acompanhada com luz de velas, dando a sensação de um jantar romântico. O quadro verde, sem divisões feita pelo professor e cheia de conteúdos, está escrito em poucas palavras ”Banquete Visual e indigestão imagética”. Ao invés de livros, cadernos e estojos na mesa à frente de cada pessoa há uma mesa posta, com pratos, talheres e copos, com direito a um prato principal, uma imagem deliciosamente degustativa. Essa estrutura de sala não fica apenas no imaginário, pois foi assim que aconteceu o primeiro encontro de 2023 do Grupo Entre Pesquisa.
Para a primeira conversação, a proponente Julia Rocha precisou fazer um mise en place (termo francês utilizado na culinária para: colocando em ordem) da refeição imagética, criando um acordo prévio com os participantes: para a preparação do encontro cada uma das pessoas deveria levar consigo uma imagem impressa, seu prato, seu copo e seus talheres. Esses objetos criaram a composição de mesa posta destoante, onde os elementos não combinavam entre si, dando um toque pessoal, de uma ceia em conjunto. Quando cada participante terminou sua montagem, começamos o banquete com o primeiro exercício proposto por Julia, de uma apresentação individual do seu prato principal: a imagem escolhida. Nessa apresentação, foi como se cada presente pedisse uma garfada e saboreasse o porquê da escolha da “comida”. Nesse momento, foi possível perceber que cada pessoa presente compartilhava uma individualidade do seu repertório imagético e mesmo que fosse uma escolha aleatória, ainda assim estava ligada a uma identificação pessoal.
Essa analogia remete a experiência de conhecer um novo restaurante e seguir uma recomendação para o pedido; ela nos cai bem quando um elemento favorito e já identificado no nosso paladar é mencionado, podendo ser uma carne, um tipo de queijo, alguma verdura, e por aí vai, nos mostrando traços pessoais nessa possível nova escolha. Com a imagem, não é diferente, sempre há um elemento que nos impacta, atravessando nossas referências internas, mostrando que nossas escolhas não são em vão, e sim parte de uma nutrição estética. Esse conceito, desenvolvido por Mirian Celeste Martins, foi aprofundado de outra forma no segundo momento do encontro, onde Julia questionou os participantes sobre como comemos as imagens diariamente, quais delas trazem elementos mais nutritivos e quais são nossos podrões - aquelas refeições sem grandes valores nutricionais, mas com forte apelo degustativo. Como podemos fazer para buscar um equilíbrio nutricional no quesito do consumo visual?
Pensando na necessidade de buscarmos uma riqueza em termos de nutrição imagética, compartilhamos coletivamente sobre como fazemos para comer as imagens, quais são as estratégias estabelecidas ou a falta delas. Para algo mais nutritivo, temos como buscar de forma virtual ou física como os livros, espaços acadêmicos, espaços expositivos, grupos de pesquisa, artistas, mas também temos o outro lado, o que nos sustenta de outra forma, talvez não considerado tão saudável quanto, mas que continua sendo uma prática deliciosa, como os conteúdos de redes sociais, podcasts de fofocas, os streamings, novelas, propagandas, entre outros. Independente de onde consumimos, isso perpassa o conceito da nutrição estética, um exercício de consumo de repertório visual e cultural, estando ligado às experiências no campo da arte ou não, e como essas referências podem influenciar nas nossas práticas pessoais e profissionais.
Para dar sustância e tornar mais palatável tudo que conversamos, Julia partiu para o terceiro momento, sendo apresentado um cardápio refinado, para além do feijão com arroz. A proponente enriqueceu nossa refeição a partilha de trabalhos de artistas que exploram a comida como ingrediente principal para sua produção. Esses trabalhos foram apresentados como um cardápio de restaurante, onde cada participante teve acesso pelo celular. Nos tornamos críticos culinários, onde tivemos que analisar cada elemento, degustando as obras com a leitura de imagem, tendo tempo para poder partilhar o que sentimos enquanto comíamos, quais eram as referências que faziam com que aquele prato fizesse sentido e nos questionando se tínhamos esse tempo para poder consumir as imagens. A conclusão foi de que às vezes, a nutrição imagética pode ser bem indigesta, pois nem sempre temos tempo para escolher o que consumimos, dando a sensação que não temos controle sobre o que comemos, mas sim são as imagens que nos engolem.
Foi quando saímos do restaurante de imagens onde vimos obras de Judy Chicago, Anna Maria Maiolino, Andrea Hygino, Jorgge Menna Barreto, Geovanni Lima e Sophie Calle e voltamos para os espaços educativos, que pensamos nas semelhanças das relações que acontecem com o consumo de imagens e a quantidade de conteúdos que são abordados nestes locais. A sensação é quase como estar em um rodízio, sem pausa, com muitos tipos de conteúdos, onde a cada 50 minutos cada professor serve sua matéria. O intuito desse processo é para que quando cheguem as avaliações, os alunos possam vomitar cada coisa absorvida, se esvaziando por completo. E antes mesmo que os estudantes fiquem com fome, esse rodízio volta com mais conteúdos ainda.
Como não vomitar diariamente com a quantidade de coisas que consumimos todos os dias? Será que somos tão gulosos assim? Ou é a velocidade do mundo das imagens que fez isso com a gente? Parece que nos acostumamos a viver com azia ou sem fazer nossas marmitas, pois é mais fácil não ter controle, deixar que os algoritmos virtuais sejam nossos chefs de cozinha, nos dando sugestões diárias do que vamos consumir. Deixando, assim, alguns questionamentos: como ter uma alimentação equilibrada, imageticamente falando, nos dias de hoje? Como ter uma relação saudável com as imagens?
Para pensar sobre essas perguntas, recebemos mais uma imagem no grupo, com uma característica muito específica de cardápio e com uma proposição de exercício: montar um menu de banquete imagético completo, pensando numa perspectiva educativa. O cardápio deveria ser proposto com direito a entrada, prato principal e sobremesa. Para começar, tivemos que pensar como entrada em uma imagem da cultura visual que daria uma abertura no nosso apetite. Depois, o prato principal deveria ser de um conteúdo de arte que combinaria com a entrada, não causando um estranhamento. E como apesar de satisfeitos nunca negamos uma sobremesa (dizem até que pode ajudar na digestão), deveríamos apresentar um elemento especial que poderia complementar docemente o banquete, sugerindo o trabalho de um artista que pensasse a comida como parte da sua produção para fechar esse cardápio.
Com o exercício pudemos ver a complexidade que é o processo de escolher imagens para montar uma refeição, mas também refletir sobre maneiras como o consumo de imagens possa ser menos indigesto e mais equilibrado, tanto para nossas vivências como consumidores, como também para nossas práticas como professores, em sala de aula.
sobre a autora:
Helena Pereira Barboza é Licenciada em Artes Visuais na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Bolsista do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo (NAVEES) entre 2018-2019, Bolsista do Projeto de Extensão Interfaces do ensino da arte entre 2019-2020 e Bolsista do programa de residência da CAPES no CEMEI Zenaide Genoveva Marcarini Cavalcanti 2020-2022. Tem interesse na pesquisa sobre arte contemporânea e como ela pode ser desenvolvida na educação e nos meios digitais, além de vincular práticas decoloniais no objeto de estudo. Atualmente faz parte do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES).
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