Vincent Van Gogh, Claude Monet, Frida Kahlo, Cândido Portinari. Todos foram artistas recentemente contemplados com o que parece ser uma nova febre: exposições imersivas. Esse fenômeno de bilheterias segue uma fórmula recorrente: filas exorbitantes, ingressos vendidos por preços não muito acessíveis, projeções de obras em diferentes ambientes e a criação de uma “experiência instagramável”. Agora até o Banksy - que parecia querer percorrer um caminho da contramão do sistema da arte e contestar ordens de circulação, autoria e comercialização - está sendo objeto de uma destas exposições em São Paulo.
Recentemente mesmo, uma exposição imersiva passou por Vitória - ironicamente num shopping, o espaço-símbolo do consumo e do capitalismo - e vi um movimento peculiar acontecendo: amigos de fora do círculo das artes me convidando para esse passeio ou pessoas que não vejo habitualmente frequentando espaços expositivos compartilhando as fotos da experiência. A todos os convites eu sempre respondia às pessoas dizendo que não tenho muito interesse em visitar exposições imersivas e vou tentar nesse texto refletir o porquê.
A negativa dos convites às exposições imersivas me veio à cabeça ao ver uma imagem icônica sendo compartilhada há alguns dias no universo do esporte, mas que diz muito a respeito do mundo-imagem (ACASO, 2016). No momento em que LeBron James marcou a cesta de 2 pontos que fez com que se tornasse o maior pontuador da história da NBA, liga de basquete norte-americana, chama atenção não somente o feito, uma conquista enorme para um esporte que movimenta o país, mas a grande quantidade de telas que foram projetadas em direção ao momento específico.
Uma fotografia de um ângulo específico permite não somente ver o atleta em seu grande momento, mas também que praticamente todos os presentes desejavam capturar aquele segundo, ter o registro do instante decisivo que inscrevia o jogador na história da modalidade esportiva, demarcando que também estiveram presentes naquele fato histórico. Digo praticamente, porque um dos presentes não projeta a tela do seu celular para a quadra. Notem: o senhor de cabelos brancos na fila da frente, completamente vestido de preto, ele é Phil Knight, fundador da Nike, a grande patrocinadora dos times da NBA e também empresa detentora de um contrato vitalício com LeBron James.
Quão simbólico é pensar que o homem apontado como o 26º mais rico do mundo e que detém a companhia que financia o campeonato e patrocina parte da carreira do jogador é o único ou um dos poucos que não se preocupa em ver aquele momento a partir da tela de um celular? Será que a experiência visual de Phil Knight do ponto decisivo que colocou James na história do basquete está na lógica da vivência concreta do momento? Ou será que sua perspectiva já é enviesada pela certeza de que outras lentes captariam a imagem por ele?
A quantidade de telas apontadas para o jogador me fez pensar no quanto estamos criando um elemento mediador entre nossa experiência com a realidade, uma vez que já não assistimos ou participamos do dado concreto, mas contemplamos muita coisa mediada pela tela. Nesse movimento, estar presente já não basta, é preciso registrar, compartilhar, marcar o local e as pessoas ali presentes.
Retornando ao momento decisivo da carreira de LeBron James, pelo comportamento das pessoas presentes na partida, os celulares parecem quase uma extensão dos corpos, atuando no lugar dos olhos, do cérebro e da boca. Pelo exagero, estamos condicionando nossa experiência à tela, no lugar de pensar na relação com o atleta no mesmo tempo-espaço e desfrutar da experiência concreta de ter a vivência com os demais sujeitos que estão no ginásio. Basta lembrar da última vez que você assistiu a um show ao vivo e uma música marcante da banda começou a tocar: quantos celulares foram empunhados e passaram a criar uma lente mediadora entre sua experiência de olhar para o palco? Ou mesmo numa viagem diante de um ponto turístico ou vendo um fenômeno da natureza, como o pôr-do-sol, quantas pessoas estavam efetivamente vivendo aquela experiência e quantas estavam registrando para compartilharem via redes sociais?
Essa lembrança do volume de telas iluminadas filmando e fotografando um ponto me levou a outra relação de presença e alienação com o campo das artes visuais. Quando pensamos na experiência de visitação a “grandes obras” de “grandes mestres” em “grandes museus” de “grandes cidades” do mundo, é recorrente que aconteça um fenômeno semelhante a essa experiência “LeBron James”. Basta lembrar da imagem mais representativa, porque recorrentemente vemos fotografias do aglomerado de pessoas se acotovelando para fotografar a Monalisa, de Leonardo da Vinci, talvez a representação iconográfica mais reconhecida do mundo ocidental.
A experiência mediada pelas telas é ainda mais acentuada pelo volume de pessoas que constantemente se aglomeram em frente à imagem. Existe um grande efeito de destaque, que é ainda mais acentuado pela redoma de vidro e pela barreira de madeira que parecem tornar as pessoas mais obsessivas pela necessidade de registrar-se frente à obra. É preciso de qualquer forma mostrar “eu estive lá”.
O hiperdesenvolvimento da linguagem visual, impulsionado pelas novas tecnologias, produz a multiplicação de imagens em todos os aspectos da nossa vida e isso produz um efeito rebote: o sentido de que vivemos uma experiência incompleta se não se exibem as reproduções visuais dessa dita experiência. (ACASO, 2009, p. 31)
Essa percepção sobre a forma de visitação aos espaços expositivos ser agora amplamente mediada pelas telas não me é exclusiva. Foi pensada inclusive dentro da arte, na série Sur-fake (2015), do fotógrafo Antoine Geiger, que ao longo dos anos tem registrado transeuntes de espaços urbanos e sua relação de “engolimento” diante das telas dos dispositivos móveis. Para a presente reflexão vale trazer sobretudo as imagens que dialogam diretamente com as do exemplo anterior, visto que parte das imagens da série de Geiger foram produzidas no Museu do Louvre, mesma instituição que abriga A Gioconda de da Vinci.
Antoine Geiger - Sur-fake (2015)
Com a série, o artista discute o processo de alienação do mundo físico, subjugando o corpo à obediência e aos comandos dos celulares, aparatos de propagação da “cultura de massa”. A perspectiva de alienação dialoga diretamente com tudo o que venho pensando desde o momento em que vi a foto de LeBron James, justamente pelo paradoxo que representa a necessidade do público da partida em se fazer presente no momento histórico ao mesmo tempo em que se distanciam do feito que acontece naquele momento.
Em todos esses exemplos, no jogo de basquete, nas exposições imersivas, nas viagens, nos espaços instagramáveis, as pessoas parecem mais preocupadas em partilhar a experiência vivida do que efetivamente em vivê-la. Será que a necessidade de compartilhar a experiência com os outros está substituindo a experiência de aproximação com a realidade? Será que esse sistema enlouquecido de projeções vai substituir coleções com obras concretas?
A própria ideia da imersão, da qual sou tão resistente, me gera uma repulsa por parecer um chamariz para desavisados de que aquela experiência não tem efeito nenhum de contato com a produção do artista, mas sim com imagens projetadas e reinventadas para saírem “melhor na foto”. Nesse sentido, me parece mais uma espetacularização e um efeito de comercialização do que a aproximação com os trabalhos desses artistas em si. Um sistema de sucateamento das obras e de reprodutivismo onde é possível ter a mesma exposição em trocentas cidades diferentes, porque bastam meia dúzia de panos, uns não-sei-quantos projetores e uma coleção de imagens projetadas numa sala branca para vender os ingressos.
Nesse sequenciamento de exposições imersivas que se lançam continuamente a espetacularização parece ter atingido níveis não previstos ou ainda nem identificados pelo sistema da arte. Diante desse comportamento dos públicos em que a tela se projeta para documentar a vivência no lugar na concretude, percebe-se que mais vale a identificação com a imagem do que a experiência concreta em si. Ao fim e ao cabo, parece que dizer “eu estive lá” é mais importante do que estar diante da imagem.
sobre a autora:
Julia Rocha é professora da Universidade Federal do Espírito Santo e coordenadora do Núcleo de Artes Visuais e Educação do Espírito Santo - NAVEES e do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e arte contemporânea (CE/UFES). Doutora em Educação Artística pela Universidade do Porto, Mestre em Artes e Educação pela Universidade Estadual Paulista e Licenciada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Realiza pesquisa sobre o ensino da arte na contemporaneidade, mediação cultural, relações entre museus e escolas, avaliação de propostas educativas no campo das artes visuais e formação de professores.
referências:
ACASO, María. Esto no son las torres gémelas: Cómo aprender a veer la television y otras imágenes. Madrid: Los libros de la Catarata: 2016.
ACASO, María. La educación artística no son manualidades: nuevas prácticas en la enseñanza de las artes y la cultura visual. Madrid: Los Libros de la Catarata, 2009.
GEIGER, Antoine. Site do artista. Disponível em: <https://antoinegeiger.com/sur-fake>. Acesso em 9 Mar. 2023.
HERBELHA, Gabriel. Conheça o solitário torcedor que não pegou o celular para filmar recorde de LeBron James. R7, 2023. Disponível em <https://esportes.r7.com/mais-esportes/conheca-o-solitario-torcedor-que-nao-pegou-o-celular-para-filmar-recorde-de-lebron-james-10022023>. Acesso em: 7 Mar. 2023.
FERNANDES, Marcos Lúcio. Louvre bate recorde com 10,2 milhões de visitantes em 2018. Folha de São Paulo, 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/turismo/2019/01/louvre-bate-recorde-com-102-milhoes-de-visitantes-em-2018.shtml>. Acesso em: 9 Mar. 2023.
Komentarze