Luciano Feijão é ilustrador, pesquisador, professor e artista visual do estado do Espírito Santo. Nessa entrevista o leitor conhecerá mais sobre a sua trajetória, sua pesquisa envolvendo a Antianatomia Negra e como o processo se desdobra na sua forma de pensar a educação. Tive a oportunidade de ser sua aluna na Universidade Federal do Espírito Santo em 2019 e por isso facilmente relaciono pontos da teoria e da prática durante a entrevista.
Ana Carolina Pimentel: Primeiramente, gostaria que você contasse um pouco da sua trajetória enquanto artista e falasse sobre a sua produção e as referências do campo da arte para o desenvolvimento dos seus trabalhos.
Luciano Feijão: O meu início como artista foi tardio. Basicamente foi mais ou menos por volta de 2007 e 2008, quando efetivamente comecei a expor em espaços de galerias e museus. Até então eram convites muito aleatórios. A partir de 2008, eu comecei a me entender como um artista de verdade, porque isso não estava tão claro; pode parecer que eu nasci artista, mas muito pelo contrário, eu fui me tornando. Começou em 2008, quando eu organizei junto com alguns amigos e amigas na UFES um grupo de gravura chamado Célula de gravura, que tinha como foco de pesquisa o trabalho feito em litografia, na pedra. O grupo começou a ter uma repercussão, ganhou alguns editais, começou a ser convidado para participar de algumas coleções coletivas e foi aí que eu comecei a expor na GAP - Galeria de Arte e Pesquisa - com algumas exposições vindas de editais. Fizemos uma exposição no Parque da Ciência, no Parque Moscoso e então fui intensificando mais a minha presença nesses lugares, fui participando de editais e a prática como artista foi se tornando uma realidade. Hoje eu posso dizer que eu sou um artista que faz exposições.
Com relação a nossa referência, seriam muitas horas de referências. As minhas referências são as mais variadas possíveis e é muito legal porque eu posso te dizer que uma das minhas paixões são as histórias em quadrinhos. Eu acho que tudo que eu sou hoje é fruto da minha paixão pelas HQs desde criança e eu tenho certeza absoluta que isso foi um dispositivo importante para me levar onde estou agora.
Eu sempre tive muito carinho, amor e dedicação por aquilo que era mais popular, o tipo de representação gráfica e cultura visual que é muito popular como histórias em quadrinhos, ilustração de jornal, cartazes. Essa coisa de artistas de referência veio muitos anos depois. Eu posso dizer que tudo começou com esse tipo de representação mais popular, que faz parte dessa cultura que acompanha a gente desde o começo. É claro que essas coisas vão se juntando a outras, somos meio que uma esponja que acumula referências ao longo da vida inteira. Posso falar que uma das minhas maiores referências talvez seja William Kentridge, mas também não posso desconsiderar o fato de que eu gosto muito do John Buscema, o desenhista que desenhava o Conan e outros super-heróis. Ou, por exemplo, as ilustrações do Milson Henriques, que trabalhava na A Gazeta. Tudo isso é muito misturado, essa é uma maneira de não sacralizar o lugar das referências artísticas, para não ficar muito elitista. Tenho um pouco desse pensamento de que quando evidenciamos as referências, ficamos num lugar muito elitista que eu não gosto.
AC: Quando você falou dos quadrinhos e charges eu lembrei do Arabson também.
LF: Com certeza, Arabson é meu irmão.
AC: Você acredita que esses cartazes que você mencionou que colecionava, te motivaram a trabalhar com a figura humana?
LF: De certa maneira sim, porque desde criança tudo isso me acompanhou e eu trago até hoje. Se observar aqui na minha estante, a maior parte dela é dedicada aos quadrinhos. Isso está comigo desde criança, mesmo. E assim como a figura, os personagens estavam sempre muito evidenciados nesses cartazes, então quando eu desenhava eu sempre evidenciei muito mais as figuras do que os cenários, por exemplo. Hoje eu trabalho com a questão relacionada ao corpo muito por conta disso. Porque o corpo me acompanhou desde muito cedo, tudo que era quadrinho, ilustração de jornal, livro, capa de disco, cartaz… Tudo tinha figura humana de certa maneira, desempenhando um papel. Hoje eu cheguei nesse ponto do trabalho que você conhece e acho muito que o fruto dessa relação com a figura que vem disso. Sempre desenhei, assistia filmes e queria desenhar os personagens dos filmes. Isso sempre foi algo muito comum na minha maneira de desenhar e apresentar figuras. Ao longo do tempo foi uma consequência, meu trabalho hoje, apesar de ter um grau de complexidade muito maior, também é fruto dessa minha escolha de querer representar o corpo.
AC: Agora falando da complexidade e de como seu trabalho mudou, você tem trabalhado o conceito de “Antianatomia” na sua produção, atuando numa perspectiva antirracista. Como esse conceito surge e que desdobramentos tem dentro da sua poética e pesquisa?
LF: Esse conceito surgiu por causa da minha dissertação de mestrado, onde eu tento trazer a ideia de um corpo torcido, um corpo que é escravizado, um corpo que foge e que tenta se livrar dessa posição escravocrata e que para isso precisa ser torcido. Porque esse corpo, desse homem negro escravizado que foge, precisa torcer uma certa condição estabelecida. Existe a condição escrava que faz com que o mundo seja pensado a partir de uma lógica escrava, uma lógica de dominação e isso tudo está muito bem organizado. Quando o Afonso, que é o homem negro escravizado, foge, ele torce isso. Ele torce porque fugir e se dizer livre não cabe nesse mundo de dominação escravocrata. Então, de certa maneira, ele torce o sentido desse mundo. Eu falei muito sobre isso na dissertação e a partir disso fiz uma exposição chamada torções no Museu Capixaba do Negro - MUCANE, e desse ponto em diante eu venho trabalhando isso, pensar o corpo negro torcido, o corpo negro desmembrado, o corpo negro reconfigurado, o corpo negro antianatômico. Porque só a partir dessas condições não naturais que é possível se pensar uma luta antirracista. Porque as estruturas racistas são muito baseadas em pressupostos de uma normatividade, então para pensar uma luta contrária é preciso pensar um corpo não normatizado. O corpo normatizado é o corpo que é entendido dentro de uma estrutura supremacista, onde o branco é a norma, então para o branco ser a norma precisa ter toda uma configuração de mundo pensada para legitimar o branco enquanto normal. E a anatomia, a ciência, a medicina, a biologia, tudo isso é construído desde a escravdão brasileira, principalmente depois dos processos de eugenia, tudo isso foi pensado para que transformasse o Brasil num país majoritariamente branco, tudo baseado em questões de normatividade. Então se a gente precisa pensar numa luta antirracista, essa luta precisa ser antinormal e antianatômica. Porque não tem encaixe. Tudo que eu venho produzindo, pensando, estudando e lendo vem seguindo um pouco esse caminho que é pensar uma luta antirracista que seja uma proposição politica contrária àquilo que a gente entende como norma branca. Então esse corpo é todo representado de uma maneira não-anatômica em que não se encontra encaixe. Se pegarmos o corpo anatomicamente perfeito de um livro de anatomia, não encontrará encaixe no meu corpo (naquilo que estou tentando desenvolver). Pode-se ver cabeça, braço, tronco, perna, pé, mas se pegar esse desenho e sobrepor numa figura anatomicamente perfeita, não é possível encontrar um encaixe. É isso que eu quero, pensar numa luta antirracista através desse encaixe, porque o desencaixe é o embate e o choque.
AC: Eu percebo muito da sua fala na sua didática em sala de aula. Quando você ensinou o corpo humano, você sempre falava pra não se preocupar em representar como é, só colocar a posição e os elementos principais. Agora, quando você fala isso, eu me lembro muito das aulas, onde a gente pensava não estar ficando interessantes os resultados do desenho e você falava que a gente conseguiria entender posteriormente.
LF: Eu acredito muito que uma aula de corpo humano fala sobre o tipo de desenho que precisa se aproximar da gente, da pessoa que está fazendo. Ele precisa ser o tipo de construção de imagem que faça com que a pessoa que esteja fazendo aquele desenho se sinta contemplada diante dele. Eu não vou pedir pra você desenhar o corpo que segue nenhum tipo de cânone (grego, romano), porque não é você. Não está em você, no seu dia-a-dia, no seu repertório, na experiência de vida, você não tem amigos assim, seus pais não são assim, sua família não é assim... Eu vou pedir a você que faça um ser humano com sete cabeças e meia? Não vou. É muito legal trazer isso porque nada está separado. A minha pesquisa, o que eu produzo, a questão da negritude está tudo junto com essa aula. É quebrar uma certa idealização, porque é muito opressora e não deixa a gente viver. Essas idealizações prendem a gente dentro de um lugar que não existe.
AC: Recordando as duas aulas, eu me lembro da utilização de materiais, porque além da técnica ser diferente do que estávamos esperando dentro da sala de aula, os materiais eram muito diferentes, alternativos. Essa utilização de técnicas alternativas de desenho e pintura são marcas expressivas do seu trabalho. Como surgiu a necessidade de trabalhar com esses meios? Qual foi o ponto de partida?
LF: Na verdade, essa questão da acessibilidade veio depois. Tudo começa quando eu olho pra desenhistas que eu gosto muito Marshall Arisman, Alberto Breccia, Sérgio Toppi, Dino Battaglia, vários desenhistas que trabalham com materiais alternativos e que eu gostava muito dos resultados. Eu olhava os desenhos e ficava muito impressionado. Eu quis poder tentar levar o meu desenho a um lugar que eu nunca tinha ido antes, porque eu olhava os trabalhos dessa galera e ficava muito tocado, sensibilizado, é um tipo de abordagem muito diferente, o resultado é diferente e o jeito de pensar o desenho também é diferente. Você teve o privilégio de ter alguém pra te ensinar e eu não, eu olhava os desenhos e copiava, tentava reproduzir. Eu via na internet e não tinha ninguém me dando aula, era uma coisa muito pessoal de olhar, entender e tentar fazer. Eu fui adaptando a metodologia até poder chegar num ponto onde eu pudesse passar para outros, como foi com a sua turma.
Ao longo do tempo eu fui convidado para dar essas oficinas em vários lugares, não só dentro da Universidade, mas fui convidado pra dar essas oficinas no Rio de Janeiro e São Paulo. Isso começou a crescer muito e eu fui convidado para dar essa oficina para pessoas em situação de rua, então eu levei pente, escova de dente e saquei durante esse período que foi uma revolução na minha vida, que o material originário - que a princípio não foi pensado para o desenho - possibilitava o acesso à linguagem. Não precisava de ter um pincel da Winsor & Newton ou esse tipo de material, porque talvez isso afastasse as pessoas, principalmente aquelas que não têm o desenho como algo muito pulsante dentro de si. Usar ferramentas alternativas foi uma maneira de fazer com que as pessoas pudessem entender o desenho por outra via, não tradicional, porque essa via tradicional do pincel e lápis às vezes travava as pessoas. Se você tem um lápis, pincel, aquarela, esse tipo de material, já vem cheio de carga. Quando você pega, pensa “Vou ter que fazer uma Monalisa agora”. Mas quando se tem uma escova de dente, pode-se fazer qualquer coisa, não é a ferramenta que impede, pois não é o lápis que já é um material nobre e clássico, que já está na história da arte. E aí nos damos conta de que usar uma ferramenta assim nos obriga a nos reconfigurarmos também. Porque trabalhar com material que não é pensado a princípio para desenho vai fazer primeiro com que vocês quebrem um pouco dessa expectativa que se cria com relação ao desenho. Você vai desenhar e aparece uma mancha não esperada e aí se desespera e quer jogar o desenho fora, mas não pode, porque precisa terminar e vai entendendo que esses acasos e desvios vão ser incorporados ao desenho. Essa gota de nanquim que pinga no papel vai ser incorporada, então aquela coisa idealizada vai se perdendo e se destruindo, se apagando. Assim ficamos mais disponíveis para a experiência. O objetivo está muito mais na disponibilidade para a experiência, para o processo, do que necessariamente em terminar o desenho. É muito mais se abrir para tudo aquilo que vai acontecer ao longo do processo do que necessariamente chegar ao desenho bonito. Porque certamente esse desenho bonito vai aparecer alguma hora, mas o que está em jogo é como você vai lidar com a dificuldade toda que o processo vai exigir de você.
AC: Pela minha experiência na sala de aula com a questão do acaso, a palavra que me vem é “descoberta” O desenho vira uma descoberta a se alcançar.
Você atuou por um tempo como professor na Universidade. Como você classifica a experiência? Quais as maiores dificuldades encontradas com relação ao aprendizado da arte contemporânea e que pode perceber de positivo e negativo dentro dos currículos de cursos e da receptividade dos alunos para testar novas técnicas?
LF: Eu comecei na UFES em 2008 e eu não era um bom professor. Eu era horrível porque eu era muito presunçoso e me achava muito. Eu até me emociono ao falar, porque eu não era um cara legal e eu me coloquei num lugar que era uma repetição do lugar que outros professores se colocavam. Eu repetia a dinâmica deles e de professores colegas que deram aula pra mim. Era de um lugar inalcançável, de um pedestal, eu queria estar nesse lugar. E pra isso eu destratava os alunos, eu achava que eles tinham que fazer aquilo de qualquer maneira, senão eles não iam corresponder às expectativas que eu criei sobre a disciplina e isso é um equívoco abissal, uma coisa brutal.
Eu sei que hoje ainda existem muitos que ocupam esse lugar, mas eu entendi que eu tinha que estar no mesmo chão que os estudantes, porque é assim que eu entendo que ensinar arte tem que ser e não enfiar goela abaixo. É entender o que eles querem. Eu trago uma proposta de atividade, se eles não vão abraçar a proposta o problema é meu e não deles. Eu tenho que olhar pra isso de uma maneira mais compassiva, de um jeito acolhedor e então eu troco tudo. Quantas vezes eu precisei reconfigurar a disciplina porque um ou outro aluno não conseguia fazer as atividades, então eu dava duas ou três aulas dentro de uma aula só? Uma pra eles e uma aula pro resto da turma. Vinham falar comigo chorando, tamanhas eram as crises de ansiedade que surgiam quando eles não conseguiam fazer uma atividade, então o meu papel era fazer eles conseguirem. Essa foi uma coisa que mudou muito a minha vida. Eu fiquei em 2008 e 2009 no primeiro contrato, depois eu voltei em 2014. E já era outra coisa, eu estava muito mais disponível. Agora voltando no próximo semestre, não sei o que vai me esperar, mas eu tenho certeza de que o que eu vou tentar fazer ali é criar condições para que as pessoas que estão recebendo essas informações que estou passando possam de alguma forma achar sentido no que eu faço. Não quero que saiam desenhistas, o desenho é o meio e não o fim. Se elas entenderem que é o meio, não interessa se vão fazer o jarro perfeito, o que eu quero que entendam que o desenho é algo que fala da vida delas.
Eu ficava muito feliz quando via seu desenho, por exemplo, porque eu estava apresentando uma técnica que muitas vezes nem eu tinha certeza. Eu crio a coragem e passo pra vocês e vocês conseguem fazer. Isso é muito legal. Mas não tem a ver com a construção do desenho e sim como você se construiu fazendo o desenho.
Muitas vezes eu não dou a ementa, sendo sincero. Eu crio uma outra, eu burlo um pouco a ementa que me apresentam porque aquilo às vezes está defasado e não encontra eco na sala de aula, não faz muito sentido para os alunos. Uma sala de aula tem gente que não quer saber de desenho, gente que quer ser fotógrafo, gente que quer vídeo, performance e passa longe do desenho. O que que é o desenho dentro de uma sala de aula diversa que não seja só produzir uma imagem no papel? O desenho tem que ser alguma coisa que faça sentido pra eles. Não é pegar o papel e fazer um rosto, é fazer com que esse processo crie algum vínculo com aquilo que está dentro dos alunos. Eu acho que essa maneira de sabotar a ementa, no bom sentido, está muito alinhada com o certo pensamento a respeito da arte contemporânea, porque se a gente olha a produção contemporânea, percebemos que as coisas são muito híbridas, uma mistura de linguagens, não é uma coisa só. Até mesmo o meu trabalho que eu sei que é desenho, mas ao longo do tempo eu entendi que precisa ser mais que o desenho, então eu já coloco coisas no papel que antes eu não colocava, tipo pregos. Os alunos e alunas dentro da sala também entendem que o desenho é muito mais do que aquilo que está descrito na ementa, é a maneira que eu proponha para que faça sentido para quem recebe.
AC: Você falou do seu lugar de professor de Universidade, mas você já ouviu relatos da sua produção ou técnica sendo levadas para escolas de educação básica? Como é ver a sua produção reverberando fora do meio artístico?
LF: Eu já dei aula para o ensino médio, mas para criança eu nunca experimentei trabalhar com aulas de desenho. Já tive a oportunidade de apresentar e conversar quando eu estava fazendo a residência do MAES - Museu de Arte do Espírito Santo - recentemente, eu recebi muitas escolas e crianças e foi muito legal. Nunca tive a oportunidade de dar oficinas e aulas para crianças, mas para adolescentes sim, várias vezes. Recentemente participei de umas aulas na escola Irmã Maria Horta e foi muito intenso e legal, foi meio caótico, mas muito bom. Porque primeiro é a surpresa da técnica, eu dei aula de esponja de lavar louça, então eles ficam surpresos com o que é possível fazer com o objeto. É realmente um desafio porque são só 45 minutos, com um conteúdo que eu fico um mês só no desenvolvimento de uma técnica, então eu tinha que resumir em 45 minutos, imagina uma turma atrás da outra. Eu entendi que eu não poderia ficar criando um discurso sobre desenho. É muito diferente da universidade, eu precisei me transformar em outro tipo de professor, mas gostei muito e espero outras oportunidades, porque eu sei também como os alunos recebem uma disciplina como essa. Muitos não estão interessados e isso faz parte, mas sempre tem uma outra pessoa que vem conversar comigo depois e quer entender um pouco mais porque gosta do que está fazendo e quer me apresentar depois. Essa é a parte legal.
AC: Você relata na série Avô-Pai-Filho que os desenhos demoraram um certo tempo para estarem prontos e que isso estava relacionado com a maturidade que eles precisavam atingir. Quais são os seus critérios para definir que uma de suas obras ficou pronta? Você acredita que existe esse ponto ou estão sempre sujeitas a modificações?
LF: O cansaço. O tempo da obra depende muito, o que eu sei é que eu faço o desenho e ele fica pronto, mas se eu passo um tempo sem olhar pra ele e depois eu volto a olhar, sempre acho que precisa ter alguma coisa a mais, isso acontece muito. Isso é um problema porque desenho nunca fica pronto e uma outra coisa é que eu acabo tendo que lidar com algo sempre inacabado. Ou seja, aquilo que me fez fazer um desenho (técnica, referências, materiais) muda com o passar do tempo. Eu olho pro desenho depois de um ano e penso que poderia usar outra técnica que eu não conhecia antes, outra referência. Então o desenho se transforma ao longo do tempo, o que é bom, mas é ruim. Eu acho que quando o trabalho tem uma finalidade e prazo em que eu preciso entregar, estar na galeria e precisa ser apresentado, isso que define o fim do trabalho, porque depois eu não mexo mais. Essa obra do Avô-Pai-Filho foi um ano de processo, eu comecei a fazer e fui transformando, então eu cheguei no ponto que eu queria. Mas eu achava que estava pronto antes e quando eu olhei eu vi que não, porque se tem uma coisa que eu aprendi ao longo do tempo fazendo desenhos que vão para exposições é que o desenho precisa ter uma carga de informação que seja condizente com a minha intenção. Então se eu tenho a intenção de produzir trabalhos que falam sobre a luta antirracista, o desenho tem que ter uma carga de material expressivo e intenso que possa corresponder ao que eu quero dizer. Então se passa um ano é porque ao longo desse um ano eu acumulei mais informações que eu gostaria que aquele desenho tivesse, por isso acabo insistindo mais.
Eu tenho um pouco de medo de retrabalhar o desenho justamente por conta de que se acontecer alguma coisa eu penso que já estava tão certinho, guardado na gaveta, por que eu fui mexer? Mas isso também me obriga a quebrar o medo, a saber que o desenho pode mais que aquilo. Eu fiz um desenho no MAES quando eu estava lá, eu tinha adorado e tirei foto com o celular. Fui para casa, fiquei olhando e aquilo me desagradou um tanto que quando eu voltei pro Museu eu praticamente cobri o desenho todo de preto e ficou muito melhor. Eu vi que eu não podia me dar por satisfeito. Tem a história de uma artista que não me lembro o nome que é mais ou menos assim: ela ia pro ateliê e fazia uma pintura, ela concluía, apagava as luzes e ia para casa. Quando ela voltava, não acendia a luz do ateliê e se colocava a olhar para o quadro, então aquilo que aparecia do quadro era aquilo que deveria ser a coisa mais importante dele. Então ela acendia a luz, o que não aparecia, ela cobria e só deixava o que aparecia no momento do ateliê de luz apagada. Assim, você vai entendendo que tem muita coisa irrelevante e que tem algumas coisas que precisam realmente aparecer. Quando eu cobri o desenho de preto e dei por concluído o trabalho, coloquei lá e recebi o feedback de um professor de educação física que falou que deixei iluminadas as partes do corpo que eram mais importantes.
AC: Pensando nessas modificações e no tempo, quais são as suas metas futuras de trabalho?
LF: Uma coisa muito certa é dar continuidade à pesquisa da antianatomia. Eu venho pensando nisso há muito tempo e agora esse nome mudou para antianatomia negra. Eu precisei incluir a palavra “negra” para marcar uma posição que antigamente não havia pensado. Essa é uma prova de que essa pesquisa, esses conceitos todos, estão em pleno movimento. Vou continuar pesquisando isso, pretendo levar para o doutorado e muitas pessoas me dizem que essa história da antianatomia é uma coisa muito importante e que eu preciso realmente investir, seja trabalhando de maneira teórica ou trabalhando em meus desenhos. Mas essa é a maior certeza que posso te dar de projetos futuros, além de continuar trabalhando como ilustrador, que é uma outra vertente da minha trajetória.
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