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entrevista Kika Carvalho

Foto do escritor: raquel das neves coliraquel das neves coli

Kika Carvalho começou sua carreira artística nas ruas de Vitória – ES por meio do grafitti. Formada em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a artista explora diferentes técnicas e materialidades em suas obras, afirmando ter sido uma das influências da Universidade em sua trajetória. A artista já foi uma das responsáveis pelo coletivo dasMina que visava fomentar a inserção de mulheres no grafitti, atuou como arte/educadora em instituições sociais e esse ano concorreu ao Prêmio Pipa 2021. Em suas obras Kika discute temas como gênero e racismo, sendo que no último chama a atenção para a utilização da cor azul nas obras.

Nessa entrevista o leitor poderá conhecer um pouco mais sobre a trajetória da artista e seu processo de criação.


Raquel das Neves Coli: De que forma você conceitua sua poética e o processo de experimentação que explora em diferentes linguagens? Como foi seu processo de ingresso no sistema da arte e no curso de Artes Visuais da UFES?


Kika Carvalho: Eu entrei no curso porque desenho desde muito nova, sou muito ligada a essa prática. Quando eu tinha 16 anos já estava trabalhando com croqui de figurino de teatro e cenário porque tenho uma tia que é diretora de teatro, então eu já era meio inserida nesse meio e minha pretensão naquele momento era cursar moda, mas era algo inviável para a realidade financeira de onde eu vim. Então eu fui cursar Artes e essa minha tia me disse: “Olha, viver de arte no Espírito Santo é quase impossível então se você vai estudar arte, faz licenciatura que você terá a chance de atuar na educação, ser professora e ter alguma renda, não fica a mercê de trabalho artístico porque aqui é muito difícil”. Eu segui o conselho dela, porque era o único que eu tinha na verdade, eu não fiz pré-vestibular, cursinho, nada.


Trabalhar diferentes linguagens vem muito do curso, porque para mim é muito natural a produção bidimensional (o desenho e a pintura) por conta da minha prática no grafitti - eu comecei a grafitar antes de entrar na Universidade. Mantive essa produção mesmo estando no curso, então o que eu aprendia na rua com meus amigos eu levava para o que eu estava aprendendo nas aulas e vice-versa, acontecia essa troca. Quando eu entrei não tinha grafiteiros na Universidade, tinham alguns alunos que começaram a produzir na rua por conta da Universidade e da vivência nela, então acho que eu entrei num momento (e acho que eu fui a primeira pessoa a fazer isso), que não tinha essa perspectiva do grafiteiro que é uma pessoa acadêmica, mas pra mim foi muito bom estar na academia por conta das disciplinas que são ofertadas, que são bem diferentes. Acho que muita coisa que eu produzi veio dessas experiências das aulas, de querer fazer coisas variadas. Apesar de a pintura me acompanhar todos esses anos, eu não sou uma pessoa apegada a uma mesma coisa, eu gosto de experimentar, me desafiar. Acho que foi um caminho bem orgânico para mim de tentar fazer coisas diferentes, que às vezes eram demandas de disciplinas, mas que eu também pegava daqueles ensinamentos e levava para alguma prática na rua.


Falando de desenvolver conceitualmente essa poética, meu ponto de partida é o que eu quero falar de algum assunto, que geralmente parte de incômodos que sinto, que percebo no meu cotidiano, tanto de atravessamento do que é cotidiano e o que é a realidade de outras pessoas, como a partir das outras perspectivas de outras pessoas que eu repenso meu lugar. É muito comum que eu esteja pesquisando alguma coisa ou lendo um livro e aquilo que eu estou lendo ou pesquisando me faz querer produzir algo artisticamente. Dificilmente eu produzo para depois tentar conceituar o que eu estou fazendo. Acho que inclusive isso é uma coisa que veio desse processo da academia, porque quando eu estava no meio da galera do grafitti de forma mais intensa, eu percebia que o pessoal tinha dificuldade de falar do que estava produzindo, enquanto no curso de Artes eu via a galera fazer muito isso, ter um super texto elaborado do que estava fazendo e no final não entregava nada plasticamente falando. Eu ficava muito não querendo ser essa pessoa que escreve textos incríveis e não domina técnica de nada e também não quero ser só essa galera que só quer técnica, que quer fazer um realismo e pintar poros com spray e quando me perguntarem do trabalho eu não conseguir responder. Não queria ser nenhum desses extremos, então uma coisa meio que puxou a outra, o que me levou a essa forma que pra mim já é automática, eu estou lendo, pesquisando e paro ali para fazer um esboço ou anotar alguma coisa que me provocou e assim geralmente acontecem meus processos.


A questão do mercado eu não sei assim bem como responder sobre o ingresso, o momento x ou y que aconteceu, eu vejo que é um movimento de alguns anos que culminou nesse lugar maior. Algo que é dito sobre a definição de sucesso se centra em quando você é representado por uma galeria, o que pra mim não é o ideal de tudo, não é uma coisa que eu trabalhava almejando única e exclusivamente, mas que com certeza ajuda bastante. Essa representação foi um processo longo. Eu sempre produzi muito para além do que era solicitado na aula, assim como eu tinha minha produção na rua e foi acontecendo porque eu acho difícil você se inserir no mercado quando você não tem o que mostrar, quando você não tem trabalho. Eu tenho produzido incansavelmente não por questão de mercado, porque é uma coisa que eu achava que demoraria mais para acontecer, mas é porque é uma coisa que eu sempre fiz, eu não consigo não estar produzindo, para mim é uma necessidade humana, me vi fazendo isso a vida inteira em diferentes esferas, diferentes contextos. Pra mim parece surreal a pessoa produzir porque quer vender, isso não entra na minha cabeça. Acho que foi uma coisa que foi acontecendo, 2018 foi um ano muito definitivo para ir para esses espaços, porque foi o ano que fiz a exposição coletiva Malungas, com a Castiel Vitorino e a Charlene Bicalho, e foi um momento de ruptura para mim porque fui expor num espaço mais institucional, apesar de ter esse recorte racial que meio que nos limita de alguma forma a estar sempre lá. Mas isso é outra questão. Eu vi esse momento como uma possibilidade de mostrar para as pessoas que me conheciam na minha cidade por ser uma mina que pinta na rua, referência de grafitti, que eu tenho uma outra produção. Já tinha essa pesquisa sobre violência contra a mulher e feminicídio, mas só tinha explorado essas produções na rua e trabalhos em casa, nada dentro do aparato institucional. Aí eu fiz esses trabalhos já dentro dessa pesquisa e o diferencial foi que eu tive essa residência com a Rosana Paulino. Ela, sendo quem é, um nome de referência, respeitada na arte contemporânea, se deparou com o meu trabalho e o tratou com respeito, ficou impactada de alguma forma pelo que eu estava mostrando. Depois desse processo, teve um momento em que ela foi fazer uma palestra no MASP no mesmo ano sobre mulheres negras produzindo na contemporaneidade e acabou citando meu trabalho nessa palestra. Nisso, muita gente veio me procurar depois por conta desse trabalho que ela citou. Então acho que ali foi o primeiro passo mais firme dentro desse aparato institucional que reverbera às vezes para um consumo maior do mercado.


De lá para cá tive algumas outras experiências, continuei produzindo apesar de trabalhar em emprego formal, fiz alguns projetos e em 2019 expus na Galeria Pivô, mas era em outro contexto, mais voltado para a galera da arte urbana, foi um evento da Adidas e foi bom porque pude ver algumas exposições, fazer contato e vislumbrar um foco no trabalho artístico. Foi nesse ano consegui meu primeiro ateliê, que veio apenas em 2020 mas ficou nesse período de negociação, porque eu precisava de espaço, na minha casa não dava mais. Eu havia acabado de criar um coletivo com a minha parceira, a Larissa, e de repente minha casa estava cheia de lata de tinta, escada e eu estava pensando sobre ter um espaço. Ter um espaço foi fundamental porque minha obra cresceu de forma absurda, tanto de tamanho, quanto de entrega, porque pude me dedicar exclusivamente à produção. Já não estava trabalhando mais noutras áreas, ficava o dia inteiro no ateliê e nesse processo veio a pandemia, que me fez ficar ainda mais imersa nessa produção. Acho que a pandemia fez com que as pessoas parassem de dar desculpa de não trabalhar com alguém que era da mesma rodinha, já que tudo foi pro online, então não tinha desculpa pra não convidar as pessoas. Isso forçou as pessoas a olharem além da sua rede e eu percebo que muita gente passou a acompanhar meu trabalho durante esse período da pandemia, inclusive foi assim que o Tiago Sant’Ana encontrou meu trabalho. Ele é curador da Goethe-Institut Salvador-Bahia e pediu meu portfólio. Eu enviei e três meses depois recebi o convite para fazer a residência em Goethe, que é uma residência muito respeitada e eu sabia que tinha muita gente me olhando quando eu estava lá. Fiz uma produção que talvez eu tenha pegado um pouco demais porque eu pintei 16 telas em 15 dias. Foi bem intenso, mas eu estava lá com esse propósito de entregar, trabalhar e usufruir da oportunidade que até então eu nunca tinha tido. Depois daquele trabalho muita gente me procurou, inclusive a Galeria que eu trabalho hoje. A residência da Goethe foi em novembro e eu fechei com a Galeria, tinha algumas outras interessadas, mas eu fechei com a Portas, que tem me ajudado bastante nesse processo. A Enciclopédia Negra já estava para acontecer antes de eu fechar com a Galeria, então enquanto eu ainda não fechava, já estava com trabalho pronto para a Enciclopédia e aconteceu do meu trabalho virar a capa da exposição que esta na fachada da Pinacoteca. Acho que muita gente conheceu meu trabalho por causa disso. Acho que falta muito pra gente que estuda na Ufes, não sei como está agora, mas tem muita coisa que eu aprendo com meus colegas artistas que são mais velhos, pesquisando na internet sobre mercado, leilão, coisas que a gente não escuta muito na universidade.


RNC: Quem são as/os artistas que mais influenciaram e influenciam seu trabalho? Ou que outras referências você traz para a sua produção?


KC: Acho que toda vez eu vou responder algo diferente para essa pergunta, porque as influências mudam bastante a partir do que eu estou dedicada a produzir e do interesse da minha pesquisa no momento, mas quando eu comecei minhas referências eram: Audrey Kawasaki, Nina Pandolfo, Tikka, Panmela Castro. Isso foi se ampliando a partir do momento que fui estudando, conhecendo novos artistas e meu trabalho mudando, por exemplo, teve uma época que eu estava produzindo com uma pegada um pouco mais política e estava pesquisando muito o trabalho do Cildo Meireles e do Antônio Dias.


Desde que eu venho pintando os retratos azuis de forma mais incisiva eu também mudei minhas referências, tenho pesquisado bastante sobre a produção de arte do continente africano, sobretudo o movimento de Acra, que é a capital de Gana, que está se tornando cada vez mais um grande expoente de pintura de representação negra no mundo. Então, minhas referências mudam de tempos em tempos, acho que minha grande referência no momento é a Lynette, que também tem uma pesquisa de produção dos brasões que está muito baseada no trabalho do Rubem Valentim e Abdias do Nascimento. A Rosana Paulino acho que sempre vai ser uma referência para mim desde quando eu a conheci, até pela referência de pessoa que ela. Até porque acho que falta muita gente no sistema da arte como ela. Tem artistas internacionais que não são negros, mas que eu gosto bastante, que é o caso da Kiki Smith e a Jeana. Enfim, minhas referências têm sido múltiplas, sigo alguns perfis em redes sociais, sites que dão um panorama geral do que é produzido por linguagem ou por continente e tenho me baseado nesses artistas que citei, mas estou sempre pesquisando.


RNC: Como você percebe sua inserção hoje no mercado artístico no começo? Que implicações do sistema da arte vê hoje reverberando nos seus trabalhos?


KC: Acho que já tem uma questão, que é o fato de eu ter ido pra tinta à óleo, porque eu quero pintar mais devagar ou pintar menos. Por mais que soe esquisito, eu deveria estar animada para pintar cada vez mais, vender mais, mas eu não quero. Então para me obrigar a diminuir meu ritmo, porque eu sou muito fominha de ateliê, de ficar trabalhando, estou tentando mudar meu fluxo de produção e a maneira que eu vi de tentar fazer isso foi ir pra óleo, que é uma tinta que eu já tentei trabalhar duas vezes em momentos diferentes. Na primeira, eu não consegui porque morava com minha mãe ainda e dividia o quarto com minha irmã e ela reclamava do cheiro. Depois, tentei ano passado quando já estava com ateliê, mas eu ainda não conseguia aceitar bem o tempo que a tinta à óleo pede, de esperar a camada. Não curti e fiquei um pouco angustiada da espera que a tinta me fazia ter. Agora estou nesse processo de fazer as coisas com mais calma, não que eu não faça meu trabalho com a devida atenção que ele merece, mas sinto que por estar nesse momento da pandemia, de estar muito isolada é muito fácil ficar produzindo muita coisa. Eu sou muito volátil no ato de pintar, o que eu acho que vem muito da minha prática da rua, que exige uma velocidade de não ser pega pela polícia. A tinta à óleo me colocou nesse lugar de dar uma acalmada, para tomar cuidado com o assédio do mercado, de não deixar o trabalho cair na mão de flipper, então tenho tentado me obrigar a diminuir a quantidade de produção com a tinta óleo.



RNC: bell hooks em seu ensaio “Artistas mulheres” fala sobre a questão do tempo para a produção de arte e a falsa sensação da inserção nos últimos tempos de pessoas marginalizadas (mulheres, negros, latinos) nos circuitos artísticos, o que gera uma sensação de “pressa” de que se deve produzir muito agora para ser inscrito no sistema, reconhecida por ele. Gostaria de saber de você, o que você acha desse aumento de artistas que foram invisibilizados que agora estão ganhando espaço no mercado? Acredita que seja um interesse puramente mercadológico? Você sente essa pressa em produzir?


KC: Acho que esse aumento é uma questão que foi reivindicada e o mercado teve que se adaptar e agora esta cooptando. Não foi o mercado que decidiu que ia agregar essas pessoas no circuito, foi o oposto. Hoje eu vejo que essa é uma luta que esta acontecendo há muitos anos e que tem movimentos pontuais que marcaram essa história, por exemplo o movimento de Harlem nos anos 70. A gente esta vivendo um momento que eu leio a partir das minhas experiências e das coisas que eu acompanho, no Brasil especificamente, mas isso ocorre de alguma forma também em outros lugares. O fato é que as pessoas negras sempre produziram artisticamente, só que elas eram invisibilizadas pelo mercado. Com o tempo, quando essas pessoas começaram a ocupar espaços mais institucionais, sobretudo na universidade, se criou um lugar de tensão ali. Eu lembro que quando eu entrei não tinha cotas raciais ainda e a partir do momento que foram criadas e foram entrando pessoas racializadas, as demandas da instituição foram mudando. Acho que a academia estava meio estagnada no tempo, porque quando você só tem um grupo de pessoas que partem da mesma realidade, mesmas perspectivas, os assuntos vão ser sempre os mesmos. Acho que o frescor de todos os debates de todos apontamentos, dos conflitos, incômodos que geram movimentação vieram por conta dessa diversidade que esta sendo ocupada desde o espaço acadêmico até a produção em si, apesar dela sempre ter existido. Sobre essas pessoas terem sido inviabilizadas, especificamente no Brasil, com o histórico que a gente tem de ser o último país a abolir a escravidão e pensando em percurso histórico, o tempo que as pessoas foram “libertas” entre muitas aspas como, bem diz aquela frase: “a Princesa esqueceu de assinar minha carteira de trabalho”. Então, é um sistema complexo e não reconhecer esse passado é sinal de que ou se é desonesto ou desconectado da realidade. Eu vejo que estamos num momento em que se a instituição privada ou pública não tem multiplicidade de pessoas, ela já nem é racista, transfóbica, já passou disso. Hoje em dia é cafona ter só artistas brancos, é muito feio, então o mercado teve que se adequar. Acho que todos movimentos são legítimos, independente da forma que está acontecendo. Infelizmente tem pessoas que estão surfando na onda disso e causa essa ansiedade, essa pressa de querer produzir de uma hora pra outra. Eu tenho uma tranquilidade muito boa, que o que eu produzo hoje eu não estou produzindo para o mercado, eu produzo há pelo menos uns quatro anos e agora o mercado percebeu que eu existo. Mas eu vejo que tem umas pessoas que estão vindo com muita sede ao pote mesmo. Antes - agora parei de fazer isso -, eu abria caixinha de pergunta no Instagram e vinha uma galera muito nova perguntando qual é a mágica para vender trabalho, porque quer sustentar a família. É uma responsabilidade, um peso muito grande para uma pessoa muito nova, colocar uma pressão dessas para se produzir. Acho que a rede social cria essa ideia na cabeça das pessoas de que tem um monte de artistas pretos ricos, mas não é bem assim. A pessoa pode ter um ano muito bom e no ano seguinte vender dois trabalhos, então é complicado. Eu percebo que tem uma galera que tá vendo essa movimentação de quem tá há muito tempo batendo cabeça e agora tem um reconhecimento e quer ir junto a qualquer custo, então acho muito complicada essa questão.


RNC: A sua pesquisa vem girando em torno de uma busca por novas narrativas, usando muito a cor azul, questões ligadas a sua ancestralidade, da sua existência enquanto mulher negra. Atualmente, sua pesquisa continua centrada nessas questões? Pode falar um pouco sobre o que vem produzindo no momento?


KC: Sim, porque é difícil falar de um lugar que eu não conheço e a minha vida, o que eu sou, me atravessa toda hora. Mas eu estou trabalhando agora numa individual que vai ser ano que vem (2022) e vou dar continuidade nesse trabalho focado no azul, em questão de raça e gênero. Não sei se posso falar muito sobre o que estou produzindo porque a ideia é que as pessoas fiquem com vontade de ver, mas eu vou tratar dessas questões sim, mas por um viés um pouco mais pessoal.



RNC: Vi que, além do trabalho com a cor azul, você pretendia trazer mais os búzios em suas obras, você pode falar mais sobre? Como anda essa pesquisa?


KC: Era o interesse que eu tinha sim de trabalhar, mas acho que é uma coisa que as pessoas estão saturando muito na internet, um uso deliberado dos búzios. Uma hora ou outra aparece no meu trabalho como referência, pela questão histórica de que ele era usado como moeda de troca e é uma peça muito relacionada à água, ao mar, que está sempre muito presente no meu trabalho. Então, de alguma forma eles aparecem de maneira mais singela. Mas, da maneira que eu pretendia trabalhar antes, mais aprofundado, já perdi a vontade porque não curto muito fazer o que muita gente está fazendo. Acho que búzios, espada de São Jorge, tem umas coisas que ficaram muito caricatas e acho que não quero deixar meu trabalho cair nessas leituras superficiais.


RNC: A materialização da série Brasões em pipas é fantástica! Vi que existia a principio a ideia de um festival de pipa com as crianças, mas que devido ao novo coronavírus não pôde ocorrer. Quando existir a possibilidade de eventos novamente, o festival acontecerá? Pode falar mais da sua relação com a arte/educação e com os públicos?


KC: Obrigada! Eu gosto muito desse trabalho, mas na verdade ele se materializou em tela, porque ele sempre foi pipa. Eu fazia primeiro o desenho em um sketchbook e passava para a composição de cor em papel A3, pensando também na escala. Mas era para levar para o pipeiro, então primeiro vieram as pipas em si e depois as telas, porque é uma pipa feita de modo tradicional com recorte, não é impresso o papel de seda como as pipas atualmente. Por ser um volume grande de peças, eu comecei fazendo 25 de quatro tipos e aí alguns detalhes se perderam no processo de ir pro recorte. Assim, a tela veio depois como necessidade de também poder guardar mais esse registro porque a pipa como ela foi pensada para ser um brinquedo, tem esse caráter bem efêmero que se desintegra com o tempo, perde a cor com a presença do sol, tem um tempo de vida bem curto se você comparar com obras de arte. Então a tela veio depois, na tentativa de resguardar essa memória e felizmente agora ocorreu de estar no Museu de Arte do Rio (MAR) e é a primeira vez que está sendo exibida. Estou bem feliz com isso porque eu amo esse trabalho, tenho um apego emocional muito forte com ele.


E sim a ideia era fazer um festival, eu queria inicialmente levar em todas comunidades em que trabalhei como educadora, queria retornar nesses morros e levar essas pipas para as crianças porque essa produção veio muito da convivência com elas. Então, queria que de alguma forma a gente pudesse continuar dialogando sobre o que conversávamos em sala e tenho muita vontade de fazer isso ainda, mas nesse momento não me sinto a vontade para promover um encontro de pessoas.


RNC: Na entrevista para o programa Bastidores você fala sobre as dificuldades sobre mulheres grafitarem, tanto pela discriminação que pode ocorrer de alguns grafiteiros, quanto pelos medos de sofrer algum tipo de abuso, principalmente porque estamos falando de um dos estados mais violentos contra mulheres. Você acredita que o fato do espaço público apresentar um perigo eminente para meninas e mulheres faz com que muitas desistam do grafite como forma de expressão artística?


KC: Acredito totalmente, não preciso nem ir longe. Na minha própria experiência, eu era muito jogada de ir na rua, sair três horas da manhã de bike com meus amigos do centro e hoje eu olho para o que eu fazia e acho que era muito doida. A partir do momento que eu sofri violência física de fato, eu fiquei totalmente desmotivada a estar nesse ambiente público e eu acho que tem gente que nem tem esse processo de “viver livremente”, essa vida de estar na rua para depois passar por uma situação que afaste. Tem gente que já vai com medo. Então com certeza, ainda mais agora que temos um doido na presidência que normaliza várias coisas pesadas e acho que o fato dos números de violência contra a mulher terem crescido de novo de forma tão intensa, é respaldado por essa pessoa maior que temos de representação política, que faz com que todos os bichos saiam das suas cavernas. Então acho que tá bem difícil, bem complicado.



RNC: O coletivo dasMina foi criado por você e outras artistas de Vitória. Você acredita que o coletivo trouxe mais visibilidadade para a existência de mulheres no grafite? Acha que antes do coletivo existia uma ideia de que grafite era algo exclusivo dos homens? De alguma forma, acredita que conseguiu talvez desmistificar essa ideia de que o grafite é coisa de homem já que a maioria que se via eram de grafiteiros homens? O coletivo já fez algum movimento/evento no sentido de buscar empoderar mais meninas e mulheres a experimentarem o grafite como manifestação artística?


KC: Com certeza, eu e as meninas conversamos sobre a diferença de ser uma crew ou um coletivo porque o normal é ter uma crew. Mas acho que a crew tinha muito o conceito de juntar para fazer um nome grande ou disputar quem tinha mais nome pela cidade, exceto por uma ou outra como é o caso da LDM que se dedicava a fazer anualmente um encontro de grafiteiros, então eles faziam algo que era para além do grupo deles. Quando eu vim com essa provocação com as meninas de fazer um coletivo, era nesse sentido, eu não queria que estivéssemos num espaço sendo mulheres com as mesmas pretensões que os caras. Eu juntei as meninas para montar o coletivo justamente porque eu também não me sentia bem em ser o nome de tudo. Eu sei que pra muita gente pode ser confortável ser referência, mas eu não gostava de ocupar esse lugar, eu não achava isso interessante. Achava pobre pra cena e via essa necessidade de juntar mais pra gente se fortalecer, compartilhar vivência, material, tempo de estar junto com a outra, incentivar a outra a ir para a rua - porque a gente às vezes cai numas limitações impostas, tanto externa, quanto internamente, de achar que não consegue, achar que o trabalho não esta bom o suficiente e não explora enquanto os caras estão fazendo merda na rua e não estão nem ai, estão se gabando. Então acho que o coletivo ajudou muito na cena. Eu vi isso de forma muito nítida no Feme, que as meninas tinham o coletivo dasMina como referência muito forte, que muita gente se sentiu provocada a partir da vivência ali. Tinha meninas que chegaram ali porque admiravam nosso trabalho e que foram trabalhar na produção e pintaram pela primeira vez ali, então se sentiram num ambiente seguro pra pintar pela primeira vez.


RNC: Como estão as atividades do dasMina hoje? Existe previsão de haver um próximo Festival de Mulheres no Graffiti (Feme)?


KC: Previsão, na minha perspectiva, nenhuma, porque me deu uma dor de cabeça tremenda e às vezes a gente romantiza algumas coisas na nossa cabeça, de que vai ser lindo, mas às vezes não vale a pena. Hoje estou colocando mais energia na minha produção autoral, porque eu fiquei muito tempo batendo cabeça com essa coisa de vamos estudar juntas, dar as mãos, fazer coisas grandiosas e perceber que não é todo mundo que pensa assim, que não quer também, que está ali só pra usufruir de algumas coisas, não quer se dedicar então perdi o encantamento e não tenho pretensão de fazer de novo, o que eu espero é que o movimento que eu fiz a mais de cinco anos atrás tenha criado sementes nas pessoas para que elas façam os próprios Femes delas ou outros nomes que queiram dar.



RNC: Você poderia falar mais sobre o Vão Coletivo criado por você e Larissa Rangel? Quais são os planos do Coletivo para os próximos anos?


KC: O Vão Coletivo foi um projeto que criei com a Larissa a partir da necessidade de um trabalho que eu queria fazer com as crianças do Morro do Quadro, onde eu era educadora social na época e surgiu o Edital da Arte é Nossa. Eu não queria fazer um trabalho de portfólio meu, queria unir minha produção, minha experiência de intervenção urbana com a arte/educação e assim surgiu o Pique-Pintar, que é no Espírito Santo o maior mural de pintura de protagonismo infanto-juvenil. Eu não deslumbrava trabalhar com nenhuma produtora porque tive péssimas experiências e a Larissa sempre se colocou a disposição de me ajudar, então pensei em fazer um coletivo, porque ela me ajudar e ficar off não me parecia interessante. Queria que as pessoas percebessem que ela também estava inserida nas coisas, que ela fazia parte das realizações e assim surgiu a necessidade de fazer o coletivo. Depois fizemos mais uns três trabalhos grandes, eu sai do meu trabalho formal e fui me dedicar ao ateliê e ela também se mudou e não pôde fazer mais coisas, mas eu não tenho nenhum projeto específico pra realizar, mas se acontecer com certeza estaremos juntas para realizar.


RNC: Como é a questão do tempo para a produção? Antes de abrir seu ateliê você atuava como educadora social em instituições, o que devia consumir um tempo em que você poderia estar produzindo. Como foi a decisão de focar no seu trabalho artístico? Quais são os maiores desafios dessa escolha?


KC: Nossa, isso é uma saga que acompanhou toda minha vida acadêmica porque eu sempre trabalhei, entrei na Ufes já trabalhando por conta de material caro, transporte, tudo e venho de uma realidade de uma mãe com três filhos, sem ajuda financeira do pai então nunca foi uma possibilidade não trabalhar. Eu trabalhava num horário de contra turno das minhas aulas e de noite ou no final de semana eu ia pintar na rua, fora as coisas que eu tinha que fazer na Ufes. Teve um tempo que eu tive que trancar o curso, acho que por uns seis meses não só por questão de trabalho, mas também por saúde mental, porque estava passando por um processo bem delicado e não conseguia ir nas aulas, então tranquei. Mas estava sempre trabalhando e produzia na hora que dava. Eu também sempre fui uma pessoa que, lógico que eu saia, tinha vida social, mas isso nunca foi meu foco, pra mim não era esquisito tirar um sábado para pintar e ficar desenhando, me dava prazer, mas era um pouco complicado porque eu ficava um pouco frustrada de não conseguir me dedicar como eu queria. Quando me formei tirei um peso enorme das costas porque não aguentava mais a universidade e não precisava mais ter aquele vínculo fixo de estar fisicamente em Vitória para ir para a aula e também não tinha que ficar fazendo manobras para conciliar meu tempo de aula com o de trabalho. Quando eu saí da Universidade continuei trabalhando, mas já estava saturada. Eu gostava muito do meu trabalho, acreditava muito nele, só que houveram umas situações de violência então ou eu continuava e ficava louca ou eu saia e tentava me curar porque trabalhar com criança em vulnerabilidade social é bem complexo. Uma das minhas chefes até me falou que uma das minhas maiores qualidades era também meu defeito porque eu me ligava muito as crianças. Como eu tratava as crianças de uma forma que muitos educadores não tratavam, elas se sentiam muito a vontade pra falar comigo e na aula de desenho muita coisa que elas não têm coragem de falar com psicólogo ou com a assistente social aparecem e você percebe e tem que conversar e às vezes escuta uns relatos absurdos. Eu não conseguia ser essa pessoa que estava na sala de aula e recebia um relato de abuso e saia do portão do trabalho e ia viver minha vida como se eu não tivesse escutado aquilo sair da boca de uma criança. Isso não me fazia bem, então criei coragem pra sair e me arriscar a viver exclusivamente do meu trabalho, porque eu já tinha um reconhecimento. Só que tinha aquele receio de não conseguir pagar o aluguel, mas eu vi que não estava me fazendo bem e por conta de uma situação específica eu dei um basta e fui meter a cara na produção de trabalhar 24 horas por dia e isso é desde metade de 2019 para cá. Então é recente essa produção integral ao trabalho artístico.


RNC: Pensando na reverberação do seu trabalho para dentro das salas de aula e em conexão com o planejamento e atuação de professores da educação básica, que questões você gostaria de ver sendo colocadas para crianças e adolescentes? Dito de outra forma, como você gostaria de ver sua produção sendo partilhada e ensinada em materiais educativos e livros didáticos?


KC: Eu fico muito feliz com isso, porque a minha produção vem muito de uma tentativa de preencher uma lacuna, uma ausência de referências que eu não tive a vida inteira, desde a minha formação básica. Apesar de ter tido uma professora de artes excelente, ela não trazia tanto artistas negros porque não tinha nos materiais didáticos. E também na universidade, de chegar lá achando que era um lugar de emancipação e ver os professores ensinando Grécia e Roma Antiga como berço da civilização, o que é de lascar. E ver professor sendo machista e essas coisas que a gente já está calejado de saber. Eu tenho produzido muito por conta dessas inquietações, de não ter tido essas referências que eu tenho buscado, que têm aparecido no meu caminho tardiamente e quando eu vejo meu trabalho chegando na sala de aula eu fico muito feliz. Não por ser meu trabalho necessariamente, mas porque sei que se a pessoa esta levando meu trabalho para a sala de aula, se ela pesquisa minhas referências, minhas motivações para trabalhar, isso vai fazer com que ela apresente o trabalho de outros artistas para aquele público e isso para mim é muito interessante, que meu trabalho seja a ponte para outras coisas e não um final. Sempre fico extasiada quando vejo chegando pra galera, até porque dentro dos termos da arte eu sou jovem, sou de Vitória e eu estou viva, então acho importante e fico muito feliz quando acontece. Acho que gostaria que o trabalho fosse mais trabalhado como essa ponte, que as pessoas analisem as questões formais da pintura especificamente, mas que também entendam o que me levou a fazer o que eu faço, da forma que eu faço e acho que quando chega nesse assunto tem muito pano pra manga e o leque fica bem maior.

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grupo de pesquisa entre - CE UFES/CNPq   |   coordenação: Julia Rocha  |  contato: entrepesquisa@gmail.com   |   site desenvolvido por Ana Carolina Ribeiro Pimentel

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