Na minha primeira semana como estudante de Artes Visuais, uma professora de história da arte fez um pedido que ainda ronda a minha memória: um texto livre. A sala ficou em silêncio por alguns instantes, tentando processar aquela liberdade que nos foi dada tão de repente. Texto livre. Logo começaram as indagações que me lembro perfeitamente (e que educadores de todas as áreas devem estar acostumados a ouvir):
“Como assim?”
“Livre, é livre mesmo?”
“Pode ser em primeira pessoa?”
“Qual o formato? Um texto dissertativo?”
“Precisa ter quantas páginas?”
Para todas as perguntas a resposta da professora era repetidamente a mesma:
“É um texto livre”.
Desde então essa situação me fez pensar sobre a liberdade criativa que nos foi arrancada durante toda a nossa vida escolar. Por que estudantes – em sua maioria – recém saídos do ensino médio, ficaram tão perdidos na hora de produzir algo sem um critério que os direciona? Por que até hoje é tão difícil lidar com um “trabalho livre”? A que ponto a escola e a academia são pensadas e projetadas para que nos dê uma ilusão de liberdade, em vez de uma liberdade real de criação e pensamento? O que nós, educadores e futuros educadores, estamos fazendo para tentar recuperar parte da liberdade perdida ou impedir esse processo de engessamento dos estudantes?
O resultado da proposta de trabalho e da liberdade que foi concedida foi um texto que serei sempre orgulhosa por ter escrito. Ele possuía a minha linguagem, minha identidade e, por mais que naquele momento não representasse muita coisa num cenário educativo ou artístico, eu me identifiquei com ele o bastante para questioná-lo – por meio desse texto, a propósito. Me pergunto quantos alunos adorariam descobrir qual seu próprio modo de criar, sem uma linguagem com normas padronizadas que é determinada como correta para escrever.
Ainda na criação desse texto para o entre, minha mente buscou muitas vezes pelas perguntas que eu deveria fazer à orientadora antes de começá-lo:
“Meu texto poderia ser em primeira pessoa?”
“Deveria seguir um formato específico?”
Mesmo depois de anos na graduação, certos tipos de subjetividades adquiridas ao longo da vida escolar são bem difíceis de quebrar. Afinal, por que não fazer um texto livre sobre um texto livre?
E a produção no ensino da arte, é livre?
Durante a minha pesquisa para a iniciação científica e a participação no Grupo Entre, aprendi que um dos motivos para a arte contemporânea quase não fazer parte da vivência escolar é justamente essa “liberdade de”. Marina Pereira de Menezes (2007, p. 1003) diz que como “espaço de construção social e democratização dos saberes, a escola tem um papel fundamental na difusão de conhecimentos artísticos, sendo um espaço no qual as temáticas da arte contemporânea poderiam ser trabalhadas”. Ainda acrescenta que “trabalhando com a pluralidade e com a experimentação, a arte contemporânea é um convite para os alunos explorarem novas formas de produção, reflexão e significação”.
Com novos modos de perceber a arte contemporânea após os estudos no grupo de pesquisa, entendo a importância de inserir no ensino da arte propostas mais pautadas na provocação. Deixar que os alunos pensem a respeito de certas questões, desenvolvam seus projetos e que se conectem com suas linguagens, parece sugerir algo que é de si e não traçado pelo outro. Abre-se a possibilidade de se entender que nem todo ócio precisa ser criativo, e que isso é mais um conceito neoliberal que internalizamos e nos obriga a produzir o tempo todo - sem descanso ou sem um olhar para dentro de nós mesmos e nossas individualidades. É preciso reformular o modo com que a arte contemporânea também é ensinada e percebida para que os estudantes tenham acesso ao que se está sendo produzido como arte atualmente e possam se conectar com ela.
Bruno Novaes - Desenho livre (2020)
O projeto Desenho Livre (2020), do artista Bruno Novaes é uma instalação permanente na Praça Santos Coimbra, em São Paulo. A instalação é composta por lousas, giz e brinquedos educativos distribuídos no espaço, que possibilitam a livre intervenção dos passantes. Sobre o projeto, o artista escreve:
“Pensando o jogo, o desenho e a escrita como manifestações inerentes à nossa essência e em diálogo com a natureza. As interferências feitas pelos participantes, à medida em que se passam os dias, revelam sobreposições e camadas. São acúmulos e resquícios de gestos, palavras, desenhos e histórias que acabam por criar conversas imprevistas e informais. As marcas deixadas e apagadas sugerem um senso de comunidade e compartilhamento. Desenho, lousa e jogo, do lado de fora da escola, experimentam ser livres”.
Bruno Novaes - Desenho livre (2020)
Penso muito sobre o trecho “Desenho, lousa e jogo, do lado de fora da escola, experimentam ser livres”. Fora do ambiente escolar é possível se desprender de práticas subjetivas que nos colocam em caixinhas? Isso se torna desafiador justamente no desenvolvimento de um trabalho livre. Até onde vai a linha do que é de fato uma produção livre? Também significa ser livre o pensar por meio de coisas que já estão introjetadas no nosso processo de aprendizagem?
Tenho o costume de buscar um tema na internet de forma bem superficial para saber quais os principais tópicos abordados sobre ele pela grande maioria das pessoas. Numa rápida pesquisa sobre “desenho livre”, me chama atenção os títulos “aprenda desenho livre” e “Pedagoga e artista oferece aulas de desenho livre”, além de propagandas de escolas que garantem que essa prática compõe o currículo delas. O que me faz pensar o quanto a prática do desenho livre tem sido continuamente repetida e adotada como recurso de ensino, sendo agora até mesmo sistematizada em métodos repetitivos e mecânicos (o que parece oposto à ideia de liberdade do título da atividade).
Provoco a pensar sobre todas as perguntas não respondidas desse texto – porque também não sou eu quem tem as respostas. E pensar em todos os processos que fizeram o tema do desenho livre na escola ser considerado produto. A que ponto os educadores estão sendo preparados para lidar com a liberdade de fato? E, principalmente, quais recursos temos e podemos utilizar para respeitar as individualidades, estimular o pensamento e a criação dentro desse sistema que muitas vezes nos padroniza?
sobre a autora:
Ana Carolina Ribeiro Pimentel é graduada em fotografia pela Universidade de Vila Velha e atualmente cursando licenciatura em Artes Visuais pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Participa do Grupo de Pesquisa Entre - Educação e Arte Contemporânea (CE/UFES) com foco na linha de processos artísticos e educativos relacionados na contemporaneidade.
referência:
https://www.brunonovaes.com/
Texto muito interessante!! Me fez pensar em muitos momentos da educação básica que influenciaram a forma com que cheguei a graduação, sem ser saber lidar com essa tal liberdade.
Muito legal! Também participei da experiência de produzir um texto livre em aula e fiquei igualmente chocada kkkk amei o conceito e a obra do Bruno Novaes 💕