Uma das perspectivas contemporâneas do ensino da arte se propõe a partir do questionamento da linearidade enganosamente evolutiva da cronologia das produções artísticas. No lugar de um trabalho que proponha um caminho linear, que percorre a produção artística narrada pelos livros de história da arte, propõe-se que o planejamento dos professores: transpasse variados contextos, relacionando-os e confrontando-os entre si; atravesse diferentes tempos, evidenciando os encontros e fricções entre produções de outros períodos e investigue múltiplos autores, demarcando como as respostas para perguntas semelhantes podem ser complexas e variadas.
A recriação de uma linha do tempo que não seja unidirecional e evolutiva possibilita um olhar ampliado para a produção de outros tempos, além de evidenciar que as produções artísticas e imagéticas se reconfiguram a partir das leituras produzidas de maneira contextual. Assim, no lugar de uma aprendizagem voltada para a compreensão de datas e de períodos, identificam-se questões pertinentes ao momento e aos sujeitos que o compuseram, possibilitando perceber conexões com o tempo presente e desenvolver analogias anacrônicas que ressignifiquem as imagens. Ao mudar esse ponto de vista de uma aprendizagem voltada para os dados e assumir a leitura das imagens como foco central, entende-se que o ensino da arte é menos um conjunto de dados históricos, publicado nos livros e apresentado em múltiplas fontes digitais, e mais uma leitura individualizada e investigativa dos aspectos que compõem o meio artístico.
Por isso propomos o descronológico, um exercício onde sugerimos a relação entre dois tempos, a partir de conexões e desconexões entre uma obra contemporânea e uma obra de algum outro período da história da arte. Na edição de hoje conectamos as Historia Naturalis Brasiliae, 1648, de Willem Piso, com Atlas de anatomia Ondina | Ipupiara, 2007 | 2006, de Walmor Corrêa.
Diferentes leituras da ilustração científica foram e são realizadas no passado e na contemporaneidade. No século XVII diferentes missões exploratórias eram promovidas para os países do novo mundo, com o intento de catalogar as espécies da fauna e da flora e mapear os territórios ainda desconhecidos. Um dos movimentos nesse sentido foi engendrado por Mauricio de Nassau, que trouxe cientistas, pesquisadores e artistas para criar Historia Naturalis Brasiliae.
O catálogo de espécies nativas e territórios do Brasil foi produzido pelo holandês Willem Piso, a partir dos relatos de cientistas como George Marcgraf e H. Gralitzio. O atlas buscava registrar e dar visualidade para as espécies da natureza brasileira, se tornando alvo de pesquisa. Na contemporaneidade, o estudo da ilustração científica ainda está em vigor, como no trabalho de Walmor Corrêa, que explora a linguagem na elaboração de estruturas anatômicas de figuras mitológicas e folclóricas da cultura brasileira.
Os desenhos de Corrêa se apropriam dos elementos visuais recorrentes dessas ilustrações científicas produzidas no passado, feitas com o intuito de demonstrar proporções e elementos que compõem as diferentes espécies. Tal como nas ilustrações históricas publicadas em diferentes atlas, o artista também busca associar elementos de escrita que dissecam informações de caráter científico sobre a constituição anatômica dessas figuras e animais.
Produzidas com o objetivo de catalogar e criar material de estudo, as ilustrações científicas no passado tinham compromisso estreito com a representação fidedigna das espécies, ainda que parte do que foi criado não era produzido a partir da observação, mas sim de relatos (o que resulta por vezes numa visão estereotipada ou errônea das espécies desenhadas). Na produção de Walmor Corrêa, em contraposição, o caráterficcional é adotado como elemento.
O registro de figuras mitológicas e folclóricas inexistentes, como uma sereia, cria um efeito de sentido para a produção do artista que já não assume o compromisso estrito da representação, como anteriormente. Pela adoção de elementos estéticos muito semelhantes com os das ilustrações do passado, as obras de Walmor Corrêa entrelaçam ironia a partir do registro anatômico de figuras irreais.
Outra distinção das imagens diz respeito ao sentido de sua produção. as ilustrações científicas de Piso inseridas em Historia Naturalis Brasiliae eram produzidas mais com o sentido de documentação do que como produto estético de contemplação. As imagens de Corrêa, por sua vez, se inscrevem no circuito da arte contemporânea sendo expostas em diferentes suportes e montagens, propondo uma fruição do conceito em paralelo com a leitura dos elementos da imagem.
Partimos desse ponto, mas e você: que outras conexões e desconexões identifica entre as duas obras?
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